Márcia Lage
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O técnico da TV chegou, fez tudo o que eu já tinha feito e…zás! A máquina voltou a funcionar. Perguntei a ele como voltar a ter os canais abertos, que saíram do ar com o fim das antenas parabólicas.
Ele me olhou entediado. Tinha cara de um sujeito eternamente entediado. E perguntou: quer canal aberto para quê? Para ver programas religiosos? Só tem isso lá atualmente!
Respondi que era para os telejornais, gosto de estar informada. E sou contra TV por assinatura. Um gasto inútil e mais um tipo de exclusão para os menos favorecidos.
– Veja jornal não, dona. É só pra deixar a gente doido. Só desgraça.
Perguntei a ele se sabia da tragédia no Rio Grande do Sul e ele: “Mais ou menos”.
Escorreguei na dúvida que sempre atravessa meu caminho em momentos traumáticos, como o que estamos vivendo. Se eu fosse amish, aquele povo religioso que vive isolado nos Estados Unidos e no Canadá, sem rádio nem notícia das terras civilizadas, eu teria menos angústia?
Porque a angústia é minha azia. Ataca antes, durante e depois dos acontecimentos tenebrosos do Brasil e do mundo. Me vira ao avesso, me corrói por dentro, azeda o estômago, amarga o fígado, derrama toda bílis de raiva e revolta na minha corrente sanguínea. Em resumo: morro um pouco a cada desgraça.
A destruição de Encantado me fez lembrar do amigo Ângelo Lima, que pronunciava com orgulho o nome da sua cidade, derramada com singeleza sobre o rio Taquari. Que a devorou inteira.
Nunca fui lá. Mas ele a descrevia com tanto gosto, que conseguia imaginá-la. Ângelo mora em Brasília e está salvo. Mas seus pais, seus irmãos, sobrinhos, primos, o que teria acontecido com eles? Não tenho mais o contato do amigo para saber, mas torço para que todos estejam bem.
Em Santa Maria, mora minha querida ex-deputada Esther Grossi, de quem tive a honra de ser assessora. Em Porto Alegre, Marise Fetter. Em Bento Gonçalves, a família de Márcia Coser.
Todos estão salvos, porque as tragédias atingem sempre os mais pobres, os que, não tendo onde morar, se estabelecem em lugares perigosos, sob as vistas grossas do poder público.
O paradoxo desse dilúvio sem precedentes é que desalojou também gente rica, destruiu plantações, matou gado, velhos, crianças, porcos, cavalos, cães. Deveriam ter sido acolhidos, antes, numa grande arca, se houvesse algum Noé nesses tempos de prevaricação nas administrações públicas.
Passei o dia ligando para meus amigos, que se preparam para dias piores. “Bah! Não está morto quem peleia”, me disse Marise Fetter, com o espírito gaúcho de luta já pronto para o que der e vier.
Sem mais o que fazer, fui pelear com minha angústia à academia. Chutei boneco de borracha, levantei peso, corri na esteira, pedalei. Desaguei pelos poros o mal-estar que me acomete e acometerá mais amiúde de agora pra frente. Porque a terra está mais revoltada que eu. E vai retomar o que é seu doa a quem doer.
Enquanto me alongava, depois dos exercícios, li na parede, em frente a um dos muitos cartazes motivacionais espalhados pela academia: “Todos os dias você será testado. Seja forte e mantenha o foco”!
É isso. Não está morto quem peleia, não é meus amigos?
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