Márcia Lage
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O inferno são os outros, escreveu o filósofo francês Jean-Paul Sartre. Atualizo: o inferno é a falta dos outros nos dias atuais. As inovações tecnológicas são boas? Excelentes. Facilitam muito a vida da gente. Quando são bem feitas e têm a intenção de ajudar, não de atrapalhar.
A tecnologia é injusta e excludente quando é imposta sem mais alternativas a pessoas de parcos recursos para comprar um celular de última geração; a idosos que não tiveram tempo de se adaptar aos avanços tecnológicos; a deficientes visuais, físicos ou de baixo desenvolvimento mental e cognitivo; a pessoas de pouco ou nenhum estudo (46% da população brasileira, segundo o IBGE).
Exemplos: a empregada de uma advogada que conheço queria muito fazer natação no centro esportivo de sua cidade. As vagas eram limitadas e ela corria contra o tempo para garantir a sua. Não conseguia.
A advogada foi ajudá-la e também não conseguiu. O aplicativo não dava conta da demanda e travava o envio da inscrição. Indignada, a advogada foi até à secretaria municipal de esportes para exigir uma forma pessoal de matricular sua empregada.
Encontrou uma fila de centenas de pessoas que tiveram a mesma iniciativa. Uma única moça havia sido delegada para preencher o formulário de inscrição do povo que, sabidamente, teria muita dificuldade para se inscrever daquela única maneira oferecida.
A empregada torrou um dia inteiro na fila, mas conseguiu. O mesmo não aconteceu com minha amiga Marta Guedes, 72 anos, ceramista cega que ganhou e não levou recursos de 30 mil reais em chamada do MINC para projetos culturais destinados a pessoas com deficiência.
Simplesmente ela e os demais contemplados não foram avisados da seleção, cujo resultado foi divulgado apenas no Diário Oficial da União e no site do Ministério.
Marta estava sem computador, sem Internet no celular e sem visão para pesquisar outras formas de contato com a instituição. Perdeu a chamada. Perdeu o recurso que lhe daria um ano de argila boa e segurança para queimar suas peças, sem ir à falência com a conta de luz. Perdeu, principalmente, a alegria que sente quando amassa no barro suas desventuras.
Custava o Ministério da Cultura ter nomeado uma pessoa para ligar, passar um e-mail, um telegrama, oferecer uma atenção especial a essas pessoas convidadas a se integrarem à produção nacional de arte?
A ideia é louvável, mas falha na execução. Propõe dar visibilidade a essa população, mas esquece do mais importante: acessibilidade.
As plataformas digitais não são para qualquer um. Até que essa geração de idosos, deficientes e de pouco estudo seja superada, seria mais humano não acabar de vez com as formas pessoais e analógicas de inclusão.
A ressalva vale para todos os servicos, principalmente os de punição aos cidadãos, pois cometem injustiças. Outra amiga, de 76 anos, tenta desde o ano passado cancelar quatro multas que somam 800 reais, por não ter conseguido pagar a tempo quatro pedágios eletrônicos no valor total de 20 reais.
Ela estava indo de férias para a praia e foi surpreendida pelas cancelas eletrônicas na rodovia Rio/SP, que não existiam até 2023. Leu, ao passar por elas, que devia baixar o aplicativo Free Flow e pagar em 15 dias. O aplicativo não baixou e ela não tinha viajado com o Laptop. Até tentou uma lan-house, mas elas foram extintas pelos smartphones.
Na volta, quase um mês depois, conseguiu entrar no site da concessionária e pagar os pedágios. As multas, no entanto, já constavam de sua carteira digital, sem a opção de recorrer. Só de aceitar e pagar com desconto.
A amiga, que não tem dificuldade com a internet, procurou toda forma de contestação. Mandou o comprovante de pagamento dos pedágios para a ANTT, para as ouvidorias de todos os órgãos relacionados à questão, argumentando que a causa das multas não existia, uma vez que a concessionária havia aceitado o pagamento do pedágio fora dos 15 dias regulamentares (o que é um prazo muito curto levando-se em consideração os percalços de cada um).
Não recebeu nenhuma resposta, as multas já venceram e ela decidiu que não vai pagar. Tendo em vista sua idade, a empresa vai fazer o que as empresas sempre fazem: ignorar solenemente os direitos da consumidora e deixar que a injustiça recaia sobre ela, sem um ai a mais.
O carro vai acabar, ela vai deixar de dirigir um dia, e vai levar para o túmulo essa desobediência civil. Já até escolheu seu epitáfio:
Morro mas não pago o que não devo.
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