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Diário do Medo – PARTE III

Um caso recente na família mexeu com a saúde mental de todos. Foto: Reprodução/Internet

Márcia Lage
50emais

Aos poucos Dolores entende o medo que tem de ficar demente. Um caso recente na família mexeu com a saúde mental de todos.

Num hospital público, ela segura a mão da paciente, confusa e humilhada, enquanto a cuidadora lhe troca a fralda.

Tinha sido encontrada inconsciente em casa.

Até que os médicos descobrissem o que provocou o desfalecimento, causa de grave desidratação e desnutrição, o quadro da paciente inspirava compaixão, culpa, remorso e medo.

O número de idosos que mora sozinho tem crescido muito no Brasil – cerca de 5 milhões segundo o IBGE – e aquela mulher, ali na cama do hospital, era o modelo completo: sem marido ou filhos, aposentada precocemente e com baixa remuneração, poucos amigos, vida social e cultural zero, mania de mentir e de esconder-se da família, até chegar ao ponto de quase perder a vida por um segredo que não queria revelar.

O sentimento de solidariedade da família mudou para irritação, quando os médicos anunciaram que havia um balão bariátrico no estômago da paciente.

Ela não conseguia engolir nem água, vomitava tudo que lhe punham na boca e começava a ter uma hemorragia. Era necessário extrair o balão.

As irmãs encontraram na casa dela o recibo de R$8 mil pelo procedimento.

Com apenas dez quilos de sobrepeso, ela havia encontrado um médico que recomendou a cirurgia, sem exigir exames ou acompanhantes, como é de praxe.

Um verdadeiro abuso de vulnerável, dada a idade da paciente, 67 anos, a não indicação da cirurgia e a visível perturbação mental, que a levou a se arriscar para perder peso, comprometendo também a renda com um empréstimo consignado, que a família teve que quitar.

Foram duas semanas de UTI e mais duas de enfermaria, até que saúde fosse restabelecida.

Quando teve alta, não andava, não tinha controle do esfincter e da bexiga e não conseguia se comunicar, as palavras derrapando na mente sem memória.

Uma equipe multidisciplinar do SUS se encarregou de continuar o tratamento em casa e vigiar para que ela não ficasse sozinha.

Sem aviso prévio, chegavam psicólogos, psiquiatras, fonoaudiólogos, fisioterapeutas, advertindo sobre a lei do abandono de incapaz.

A irritação transformou-se em preocupação extrema, quando veio o diagnóstico: demência.

Não foi por vaidade que a senhora se deixou abusar por uma clínica ( já está sendo processada pela família). Foi por não ter mais o juízo no lugar.

Não vai poder morar sozinha. Terá que ser vigiada como uma criança. Tem compulsões várias e mania de comprar e acumular o que não é necessário.

Não consegue limpar a casa nem fazer a própria comida. E já era assim antes.

Sempre foi assim, desde criança. Aquele membro da família que não se enquadra, que ninguém conhece direito e todo mundo vai deixando para lá.

Como um doido oculto no porão que, de vez em quando, surta e sai nu pelas ruas, ela, com seu ato tresloucado, finalmente se fez notar.

Foi como uma mulher-bomba que explodiu na casa de cada membro da família, instalando o trauma.

Todas as Dolores surtaram coletivamente.

Conto mais no próximo domingo.

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