Maya Santana, 50emais
Não há como não se emocionar com esta crônica do historiador e professor da Universidade de Campinas Leandro Karnal, publicada no Estadão, sobre seus sentimentos em relação à morte recente da mãe, sete anos após a partida do pai. O tema da crônica já mexe com nossas emoções mais profundas, sobretudo para quem, como o autor, já se despediu do pai e da mãe. “A lição é sempre a mesma: faça com seus pais em vida o que você deseja. Não aumente a dor da morte com a pungência do remorso. Só temos tempo hoje”, diz ele, num texto que exala afetividade e extrema tristeza pela dor da irreparável perda.
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Minha mãe morreu. Repito a frase de Mersault sem a indiferença da personagem de Camus. Pelo contrário. O redemoinho de emoções foi inédito na minha vida. Uma dor psíquica e física, um encolhimento da percepção do mundo e fechamento em torno de uma cela de chumbo.
Eu havia sofrido muito, há sete anos, com a partida do meu pai. Meu coração sangrou por anos. O tempo fez a dor sair da posição de protagonista e aninhar-se nos bastidores. Ainda choro, especialmente quando leio uma carta dele ou vejo uma foto. Hoje meu pai dialoga comigo no silêncio e, de quando em vez, até sorrio pelas memórias.
A data do falecimento dele era o horizonte maior da minha possibilidade trágica. O gráfico acaba de se ampliar. Meu coração sangrou naquele dezembro de 2010. Agora perdi minha mãe. Parece que perdi o coração, que ele foi enterrado, que o próprio ato de sentir estava ligado a ela.
Revivo sensações antigas. Perder pais nos torna mais velhos. É, de fato, o início da vida adulta. Acabo de ficar órfão total. Não ser mais filho muda nossa posição na ordem do mundo. A fila andou. A quem recorrer com a certeza do amor incondicional?
Explico melhor. Nunca tive qualquer medo de morrer. Testei o princípio muitas vezes em acidentes e situações de risco. Parece-me natural encerrar a vida como ser biológico que sou. Um dia, meu diligente bisavô faleceu. Era um homem trabalhador e muito respeitado. Estudei-o na árvore genealógica da família, mas seu passamento há 85 anos não deixou rastros fora de arquivos e lápides.
Sei que a morte da minha mãe, a minha ou de qualquer pessoa passará por completo. Sempre entendi e aceitei o rito de Quarta-feira de Cinzas: sou pó e ao pó retornarei. Diria até que me conforta não ser imortal e, um dia, cansado, encerrar o combate. Já escrevi que a beleza da flor natural é seu caráter efêmero. A fealdade da rosa de plástico está na sua durabilidade e em sua tentativa de emular a vida pulsante. A flor artificial é um pastiche, pobre coitada. A vida eterna seria insuportável. Nunca tive medo da morte. Lembrando o bom Epicuro, preciso honestamente viver e honestamente morrer. De resto, nunca encontrarei a morte: enquanto eu for, ela não será, quando ela surgir eu deixarei de ser, dizia o filósofo em carta a Meneceu.
Sobre o que choro? A viagem no trem da vida está ficando com menos passageiros conhecidos. Os que embarcaram na mesma estação estão partindo. Os Karnais que vieram ao mundo na década de 1990 ou no século em curso têm sobrenome, genética, olhos, idiossincrasias e outras coisas absolutamente da família. Porém, pertencem a outro mundo, com outra história, e apresentam um futuro distinto. São hoje o que fui para meus tios e avós: sangue e sobrenome, mas extrato de outra cepa e broto de outra rama. Os jovens trazem vida, porém outra vida, desconhecida e nova, desligada dos liames geracionais da minha.
Reclamo dos lugares vazios no comboio biográfico. Sinto a força do nada que se amplia. Nunca mais abraçar minha mãe. Nunca mais! Que ideia avassaladora! O corvo de Poe abre a asa fúnebre da memória. O lugar dela à cabeceira da sala de jantar para sempre reclamará a ocupante usual. Parece que continuo a apresentar uma peça em um imenso palco e a cada ano sai alguém do elenco.
Tudo remete à memória dela. Estou escrevendo em uma cadeira de avião. Aos 4 anos, voei pela primeira vez, no colo de Dona Jacyr. Lembro-me perfeitamente da cena e tudo parecia seguro porque os olhos azuis de minha mãe sorriam. Antes, nada poderia me atingir, agora tudo pode. Fragilizei-me. Diminuí.
Quando as doenças tomaram minha mãe, nós a cercamos de cuidados intensos como ela sempre prodigalizara a todos. Os últimos anos foram felizes, entremeados pelo lobo sorrateiro da fragilidade física. Todos os sonhos foram cumpridos. Todos os destinos foram visitados. Como muitas mães, ela viu os filhos crescerem e acompanhou, emocionada, a chegada dos netos. Ela saiu deste mundo tendo experimentado a felicidade.
A lição é sempre a mesma: faça com seus pais em vida o que você deseja. Não aumente a dor da morte com a pungência do remorso. Só temos tempo hoje. Depois passa. Consegui dizer infinitas vezes que a amava. Alegro-me de ter demonstrado com meu coração, meu cérebro, meu tempo e minha carteira que ela era fundamental. Sem ao menos esse consolo, seria insuportável o momento. Na UTI, faltando poucas horas para o fim, pude enunciar as únicas coisas importantes: dizer obrigado e que eu também a amava.
Esta é uma coluna melancólica. Não poderia escrever outra agora. Sempre soube que o luto seria intenso porque celebrava o vivido entre nós. A dor da perda é a alegria da vida com sinal trocado. Muito amor gera também ausência que punge. Pior seria não ter amor a perder e nenhuma lembrança a celebrar. Nós superaremos a trilha escura porque Dona Jacyr Karnal criou filhos fortes. Nós continuaremos a andar no mundo. O sol surgirá sempre, indiferente a nossas tragédias pessoais. A noite cobrirá o que nos é caro. Entre um crepúsculo e outro, vivi o privilégio de ter minha mãe.
O desejo tradicional é equivocado: os mortos sempre repousam em paz. Nada mais os aflige. A paz é uma luta para os vivos. Espero reencontrar a minha. Bom domingo para todos que têm mães ao seu lado ou na memória.