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Por que você tem que assistir ao filme “As Órfãs da Rainha”

Quando a belíssima abertura de “As órfãs da Rainha” preencheu a telona, dando profundidade à superposição de montanhas que nos transporta para o que virá na sequência da história, pensei: Um cuidado estético desse não pode ser exibido em telinhas de computador e celular. Foto: Divulgação

Márcia Lage                                                                                                                                                           50emais

Quatro cabeças brancas se destacavam na imensa sala de exibição do Cine Brasilia. As outras cabeças também eram de pessoas acima dos 60. Só que de cabelos pintados. É o hábito de resistência que faz esse pessoal se arrumar e sair de casa para ir ao cinema ou é a saudade antecipada das coisas que estão se acabando?

Pensava nisso quando um casal amigo chegou, sem que houvéssemos combinado o encontro. Ficamos conversando sobre o Festival do Cinema Brasileiro que o Cine Brasilia realiza há 56 anos, tendo premiado obras primas como A Hora e a Vez de Augusto Matraga, direção de Roberto Santos, na primeira edição; Os Deuses e os Mortos, de Ruy Guerra; Tenda dos Milagres, de Nelson Pereira dos Santos; Tudo Bem, de Arnaldo Jabour; Tabu, de Julio Bressane; Xica da Silva, de Cacá Diegues; A Hora da Estrela, de Suzana Amaral e tantos outros que disputaram o Oscar, a Palma de Ouro de Cannes e muitos festivais internacionais mundo afora.

Estávamos ali para assistir a outra obra prima do cinema nacional, tão pouco divulgado e apreciado nesses tempos de streaming e séries intermináveis, que amarram todo mundo em casa.

Quando a belíssima abertura de “As órfãs da Rainha” preencheu a telona, dando profundidade à superposição de montanhas que nos transporta para o que virá na sequência da história, pensei: Um cuidado estético desse não pode ser exibido em telinhas de computador e celular. Há uma grandiosidade no cinema que exige respeito e reverência.

A diretora Elza Cataldo, que faz parte dessa geração de cineastas comprometidos com a história que se quer contar, desde o roteiro até figurinos e locação, criou uma vila em Tocantins, Minas Gerais, para dar realismo ao filme.

A direção de fotografia de Fernanda Tanaka e a trilha sonora de David Tygel apõem ao filme uma qualidade de super produção muito acima do que se vê atualmente nos cinemas. Inclusive em premiados do Oscar.

O tema é sério:  os primeiros anos da colonização do Brasil, a vinda de mulheres da corte para constituir familia com homens toscos, em locais inóspitos e a Inquisição, que andou por aqui entre os séculos 16 e 18.

Filme cabeça, diria minha geração. De narrativa lenta, pra dar tempo ao público de apreender o que se está a contar.   Elza fez um trabalho primoroso de pesquisa e estética, e talvez não tenha público para cobrir as despesas e aplaudir seu esforço.

Todo mundo em casa vendo bobagem escrita por robôs nos gêneros romântico ou violento. Ou viciado nas produções hollywoodianas de muito barulho e pouco conteúdo.

O Cine Brasilia, inclusive, corre o risco de acabar por falta de público. Desde os anos 1980 que luta para pagar-se, sem muito sucesso.

Se não fosse o festival, ja teria virado igreja evangélica. Triste destino das grandes salas de projeção país afora. Com quase 300 confortáveis poltronas e o propósito de só exibir filmes de qualidade, a sala de exibição, que nasceu com a capital, já teve momentos de glória, com mostras de cinema das embaixadas. Tempo em que o Brasil tomou contato com o cinema argentino, Iraniano, Indiano, Cubano, e outros.  Por que isso acabou? Falta de interesse das novas gerações.

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Os velhos que assistiram ao filme da Elza Cataldo sairam embevecidos com a qualidade de tudo. Principalmente da interpretação dos atores, de pouca fama e enorme talento.

Três senhoras, produzidas e perfumadas para o evento travaram comentários emocionados no banheiro. Uma gaúcha que tinha ido sozinha disse que nunca soube da Inquisição no Brasil e que estava chocada com a vida das mulheres que vinham de Portugal para povoar nosso país, vítimas de estupro e de todo tipo de abuso,  magistralmente narrados no filme.

Continuamos a conversa no amplo saguão, onde os dois amigos aguardavam minha saída, para também trocar impressões sobre a obra. É assim que funcionamos. Não aguentamos ficar calados depois de um filme de impacto, como As Orfãs da Raínha. Somos os últimos guardiões dessa estética cinematográfica.

Gerações anteriores à nossa perderam a moda, os serviços à francesa e os bailes. Nós perdemos os discos, os CDs, as discotecas e estamos para perder as salas de cinema e os filmes de arte. Tudo isso morrerá conosco. Mas enquanto estivermos aqui, resistiremos.

Veja o trailer:

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