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Muito já se falou sobre Rita Lee desde sua morte, aos 75 anos, em 8 de maio, em consequência de um câncer diagnosticado em 2021, no pulmão esquerdo.
E ainda vamos falar muito, muito, porque a artista saiu de cena fisicamente, mas deixou um legado dos mais vastos, que não desaparecerá nunca.
É disso, da perenidade do trabalho de Rita Lee, que a jornalista Flávia de Oliveira fala nesta crônica, publicada em O Globo.
Leia:
Faltava escrever sobre Rita Lee. Mas o Brasil é o país onde um luto é interditado por outro e outro e outro. Faz um mês que Santa Rita de Sampa, a autoproclamada padroeira da liberdade, partiu para aventuras em outro plano, quiçá o espaço sideral. De tão encantada pelo céu, desenhava em cada autógrafo um disco voador, foi velada num planetário.
Pranteio a cantora de voz mansa e palavra afiada acompanhando as postagens de saudade do Roberto de Carvalho, marido, parceiro, pai dos filhos, a mais completa tradução de amor da vida. Cultuo Rita ouvindo-a. Eternizo-a apresentando hits a meu neto, 3 anos incompletos. Houve dia em que ele amanheceu pedindo “Lança perfume”.
Rita vive — e viverá — na vastíssima obra. Será lembrada como a cantora brasileira que mais vendeu discos, a mais censurada, possivelmente a mais ousada, a mais direta. Além de cantar, compunha e tocava instrumentos. Na visita post mortem ao robusto cancioneiro de inspiração romântica, rebelde, bem-humorada, crítica, inspirada, chamou a atenção a profusão de gírias e expressões idiomáticas. A vida toda Rita foi também rainha dos ditos, soberana do vocabulário popular, dicionarista da massa, comunicadora dos botecos, filósofa do povo. Taí um glossário da estrela:
“Gostava de sombra e água fresca.” (Ovelha negra, 1975)
“Agora é moda pegar alguém pulando o muro.” (Agora é moda, 1978)
“Mas o que eu gosto é de andar na beira do abismo.” (Eu e meu gato, 1978)
“Eu pra não ficar por baixo, resolvi botar as asas pra fora.”
“Quem não chora daqui, não mama dali.”
“Quem pode pode.”
“Minha saúde não é de ferro, não.”
“Apesar dos pesares do mundo, vou segurar essa barra.” (Jardins da Babilônia, 1978)
“Sempre reclamando da vida.” (Doce vampiro, 1979)
“Você precisa me quebrar esse galho.” (Papai, me empresta o carro, 1979)
“Foi um corre-corre danado.”
“Um tal de segurar essa peteca no ar.” (Corre-corre, 1979)
“Você me dá água na boca.”
“Só pra deitar e rolar com você.” (Mania de você, 1979)
“Sou flor que se cheire em qualquer lugar.”
“Xingue a minha laia.”
“Venha me fazer cafuné.” (Bem-me-quer, 1980)
“Cada vez mais doido varrido.”
“Vou botar fogo nesse asilo.” (Orra meu, 1980)
“Você e eu somos um caso sério.” (Caso sério, 1980)
“Uma pessoa comum, um filho de Deus.”
“Nessa canoa furada, vou remando contra a maré.” (Nem luxo, nem lixo, 1980)
“Me vira de ponta-cabeça.”
“Me faz de gato e sapato.”
“Me deixa de quatro no ato.” (Lança perfume, 1980)
“Se me der na telha, sou capaz de enlouquecer e mandar tudo pr’aquele lugar.” (Shangrila, 1980)
“Se Deus quiser.”
“Na hora H, quando a bomba estourar.” (Baila comigo, 1980)
“João Ninguém virou um homem poderoso pra chuchu.”
“Ai daquele pobre diabo.”
“Quem bobeou dançou.”
“Hey, pé de chinelo.”
“É gente de bem, cheio de puxa-saquice.” (João Ninguém, 1980)
“Você não imagina a loucura.”
“O ser humano tá na maior fissura.”
“Cada um por si, todo mundo na lona.” (Alô, alô, marciano, 1980)
“Como um troféu, no meio da bugiganga.” (Mutante, 1981)
“Me cansei de lero-lero.”
“Eu vou sair do sério.”
“Ninguém sai de cima nesse chove não molha.”
“Estou viva, cheia de graça.” (Saúde, 1981)
“O amor passa dos limites, quem quiser que se habilite.” (Banho de espuma, 1981)
“Você me deixa cabreira, sem eira nem beira, feito barata tonta.” (Barata tonta, 1982)
“Tanto fez, tanto faz raio laser ou lampião a gás.” (Frou-frou, 1982)
“Dondoca é uma espécie em extinção.” (Cor de rosa choque, 1982)
“É só desgraça, é só baixo-astral.”
“Manda-chuva bobeou, leva chumbo.” (Barriga da mamãe, 1982)
“Desculpe o auê.” (Desculpe o auê, 1983)
“Então, meu bem, vá fundo.” (Flerte fatal, 1983)
“Pega rapaz, meu cabelo à la garçon.” (Pega rapaz, 1987)
“A sorte me deixou em xeque-mate.” (Livre outra vez, 1988)
“A vida é uma sinuca, mas confio no meu taco.”
“Meu borogodó é do balacobaco.”
“A do meio é patricinha.”
“Motorista xavecando, jardineiro azarando.”
“Meu amor é pra quem pode.”
“Quem não pode se sacode.”
“Pode amarrar seu bode.”
“Esqueci de fazer feira.”
“Amanhã tô no batente.”
“Vou rezar para Jesus aliviar a minha cruz.”
“Acordo às cinco da matina.”
“Tem muito vagabundo atrás do meu jabaculê.” (Balacobaco, 2003)
“Fique em paz com sua fulana.”
“Tchau pra você.” (Fulana, 2003)
“Malucos, a nossa vida é dar bobeira.” (Hino dos malucos, 2003)
Em 2021, já diagnosticada com o câncer que a levou, Rita escreveu e Roberto musicou uma canção para Elza Soares. Também na letra de “Rainha africana”, que estará no álbum póstumo de Elza que será lançado no fim deste mês, está lá a digital popular da compositora. Imperdível.
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