Pablo Pires Fernandes, portal Uai
Era tarde de sexta-feira quando Teresinha Soares nos recebeu em seu apartamento no Belvedere, bairro nobre na Zona Sul de Belo Horizonte. O sorriso foi sincero, como tudo que relatou, abertamente, a respeito de sua vida e sua obra. Ao longo da conversa, a serenidade desta senhora de cabelos previamente arrumados no salão de beleza revelou um pouco da inquietude e da intensidade com a qual se dedicou à arte.
Teresinha Soares é singular, tanto a mulher como a artista. E não apenas pela qualidade de sua obra – realizada entre 1966 e 1976 –, mas, sobretudo, pela intensidade de sua entrega ao ofício. Nesses 10 anos, produziu intensamente, obteve notório reconhecimento e provocou debates acalorados.
Aos 90 anos, sentada no sofá de sua casa, discorre sobre sua “fase artística” como algo bem localizado no tempo. Refere-se sempre “àquela época”, a despeito das obras que produziu ocuparem duas paredes da sala. Além da janela de persiana que mostra o fim de tarde belo-horizontino, o outro lado é preenchido pela estante, com uma garrafa de café, biscoitos e torradas sobre uma bandeja e um pano bordado.
Aos poucos, ela conta sua história e comenta seu trabalho. Mesmo 40 anos depois de ter parado de produzir arte, sua convicção a respeito dela é evidente. A entrega era visceralmente necessária e, portanto, era o certo a ser feito. E ela sabe disso.
Essa mulher realizou uma obra que obteve reconhecimento imediato na década em que produzia. Participou de três bienais de São Paulo, expôs no exterior, ganhou destaque na imprensa. No entanto, poucos se recordam, conhecem ou têm ciência de seu valor artístico. No próximo mês, contudo, os trabalhos de Teresinha Soares serão reunidos no Museu de Arte de São Paulo (Masp). A mostra vai exibir grande parte das obras da artista em retrospectiva de dimensão inédita.
Naquela sexta-feira, Rodrigo Moura, responsável pelo setor de arte brasileira no Masp e que assina a curadoria da exposição de Teresinha, observava a minha conversa com a artista sem pronunciar palavra. Apesar das inúmeras visitas àquele apartamento no Belvedere, pela primeira vez ele colocou uma questão que lhe inquietava: “Quem tem medo de Teresinha Soares?”. A pergunta é o título da exposição que será inaugurada no Masp em 27 de abril. A frase foi extraída do título de um artigo de Henry Corrêa de Araujo, publicado pelo Estado de Minas em 11 de agosto de 1973.
“Olha, eu acho que, atualmente, ninguém tem mais, né? A Teresinha Soares já está com 90 anos, velha, coitadinha. Não dá mais trabalho. Mas, naquela época, as pessoas tinham medo de mim.” A resposta dela foi espontânea, sem nada que indicasse os escândalos que provocou com sua arte e seu modo de ser.
Mas Teresinha Soares despertou medo em muita gente e sua conduta libertária chegou a causar constrangimento à tradicional sociedade mineira. Seu pioneirismo, irreverência e contestação assustaram muitos. Naquele final da década de 1960 e início dos 1970, exibiu gravuras, instalações e performances que lidavam, principalmente, com a feminilidade e a sexualidade. “A mulher tem que ter prazer, desejo, sem crime e sem castigo. É a coragem de se mostrar, de se sentir à altura do homem, de se questionar – incluindo suas zonas erógenas –, da emancipação, do prazer, do encontro. Isso tudo está no meu trabalho”, afirma, com convicção e brio nos olhos.
A proposta criativa e antropofágica de Teresinha dialogou com o espírito contestador da época (já frequentou bailes de gale no Automóvel Clube usando smoking) e se materializou em formas potentes e que expressavam sua personalidade, sua história e suas inquietações. “A mulher foi sempre meu leitmotiv. Ela sempre esteve presente desde os primeiros rabiscos e até o fim. Mas meus trabalhos Corpo a corpo, Túmulos, Bandejas, tudo isso significava a vida doméstica, a opressão, o machismo, a agressão, a violência, a falta de equiparação, coisas que só eram permitidas aos homens. Então, enveredei-me por esse caminho, além de expor nas gravuras e nos desenhos essa parte erótica e o sexo. Também, quando coloquei meus pôsteres no chão na Petit Galerie (RJ) e as pessoas pisaram, era justamente isso, uma contestação, contra o corpo magoado, massacrado.”
Para ela, arte e vida são intrínsecas e indissociáveis. “A minha arte sempre foi assim, corpórea. É como se nascesse, como se eu parisse. Ela veio como um grito. Foi uma necessidade orgânica de pular, de mostrar, de falar e lutar por aquilo que eu achava que tinha razão. Foi uma coisa muito íntima, eu estava muito ligada à arte”, relata. A visceralidade é a mesma que, em 1968, o crítico Frederico Morais constatou e escreveu a respeito da artista: “É impressionante a sua energia, a sua vontade de pintar, desenhar, viver. Produz como se estivesse possuída pelo demônio, é algo fisiológico, inadiável, intransferível, como a necessidade de, repentinamente, chorar, gritar, dar socos ou dizer um palavrão”.
A arte de Teresinha Soares é fruto de pulsão e instinto libertários. Em Araxá, onde nasceu, ela já manifestava seu desassossego. Na provinciana cidade mineira, foi professora e lia cartas do namorado para os alunos. Foi a primeira mulher a trabalhar como bancária e a primeira a exercer o mandato de vereadora do município. A família frequentava o Rio de Janeiro e São Paulo. O casamento com Britaldo Silveira Soares a trouxe a Belo Horizonte. Clique aqui para ler mais.