Márcia Lage, 50emais
Viajar é uma das formas mais prazerosas de ampliar conhecimentos. É, também, um teste de coragem, organização, estratégia, logística, administração financeira. Talvez por isso muitos odeiam viajar. Outros só viajam em excursâo, na infantil brincadeira de “o que o mestre mandar, faz”. A maioria viaja em família e os solteiros buscam parceiros que caibam no seu roteiro.
Eu prefiro viajar sozinha. Acho difícil conciliar gastos e interesses quando se viaja em dois ou mais. Para mim, viagem é desbravamento. Adoro me perder. Não seguir nenhuma dica de restaurante ou pontos de atração e descobrir onde comem os nativos, com o que se divertem, como vivem.
Gente como eu apavora os medrosos. Eles levam na bagagem todas as suas angústias. O peso da mala deles acaba sendo uma cruz que temos que ajudar a carregar. Há pessoas que só querem comer; outras carregam a ilusão de que vão dobrar uma esquina e dar de cara com o amor da vida deles; grande parte detesta museus e programas culturais em geral. E a maioria nem sabe o que está fazendo ali. Só quer postar fotos nas redes sociais.
Tenho tanto ciúme dos lugares exclusivos que descubro que não posto nada. O bom desses lugares é exatamente a ausência de ônibus de excursão e turistas barulhentos fazendo selfies. Por isso prefiro viajar comigo mesma, o que não foi fácil quando jovem. A estratégia principal dessas viagens era como escapar dos assédios sexuais e voltar das férias apenas com boas recordações.
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Viajei sozinha a primeira vez aos 28 anos, num roteiro que ia de Manaus à Bahia, naquele rompante juvenil de ter o máximo com o mínimo de tempo e de recursos. Foi como cair na boca de um jacaré: Enfrentei toscas e ameaçadoras abordagens, em todos os lugares por onde andei, com a conivência, inclusive, de gerentes de hotéis e pousadas.
Consegui chegar sã e salva a Salvador, onde um pescador banguelo, armado de perigoso arpão, me ofereceu o equivalente a 100 reais para transar com ele, ao ser gentilmente e firmemente rejeitado. Até um menino de uns 12 anos me cantou em Alter do Chão, já tendo decorado a ladainha machista de que não é bom para uma mulher ficar só.
Pois fiquei, e ainda bem que agora os institutos de pesquisa já incluem os solteiros em suas análises. (O preconceito nem considerava a existência deste segmento populacional). A constatação é que esse estado civil pode proporcionar grandes alegrias, felicidade mais constante e baixo índice de preocupação e estresse.
Quando a solteirice é uma escolha e viver só um ato de independência, viajar desacompanhado é pura emoção. Driblar cantadas, tentativas de golpes, discriminação e rejeição passa a fazer parte da estratégia e, com a experiência adquirida, exploramos o mundo como quem explora o quintal de casa. Com abertura para que o bom inesperado também ocorra, promovendo namoros, amizades, trocas preciosas de informações e definição de novos roteiros onde somos anfitriões ou hóspedes queridos em lugares que o turismo de massa ainda não estragou.
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Não há nada mais gostoso do que chegar a um lugar e encontrar um nativo que vai transformar a sua viagem numa experiência única. Uma vez comi mel extraído na hora por um ancião numa aldeia remota da Turquia. Ele me explicou como misturava ervas e estrume de gado para atrair as abelhas. Na língua dele, que nunca falei. Nos entendemos perfeitamente. Ele era o único homem da aldeia. Os jovens haviam partido. Para a guerra ou para a luta por trabalho. Ele vigiava pela segurança das mulheres e das crianças. Fiz fotos deles e, quando voltei, revelei e mandei por correio. Não obtive resposta. Mas sei que receberam e que aquele registro foi marcante para a comunidade.
Em outra viagem solo, na Sicília, um homem alto e muito elegante abriu os braços quando me viu caminhando no corso e disse, sorrindo: Esperei toda a vida para encontrá-la. Cai na risada, de tão brega que foi a abordagem. Mas, depois, aceitei que ele me levasse a um restaurante que tinha as iguarias mais frescas da ilha. Foi uma tarde de muita conversa boa e dicas excelentes sobre o transporte regional, gastronomia e passeios.
Tenho facilidade para me conectar com as pessoas e um faro jornalístico que me diz na hora se devo arriscar ou não. Quase sempre dá certo. Se não, é só sair educadamente da conversa e, em caso de ameaça, ameaçar o dobro. Hoje em dia, com os celulares, dá para chamar a polícia, mandar a localização para alguém e nunca esquecer que não se deve sair com um desconhecido fora de um espaço público.
Agora, na terceira idade, continuo viajando sozinha e constatei que os preconceitos diminuíram e que nos deixam mais em paz. Talvez pela tal invisibilidade que a falta de atrativos físicos proporciona. Acho bom. Também eu perdi o tesão com a queda hormonal pós-menopausa e encarei o advento como uma libertação. Nas minhas viagens não recebo mais cantadas e sim respeito e admiração por continuar fazendo o que gosto sem precisar de um guia de viagem.
Não tenho qualquer constrangimento de entrar sozinha num bar ou restaurante para comer e beber. Sou tratada com deferência. Às vezes conversam comigo. Principalmente, mulheres. Ainda não se libertaram de todo. Se estivesse em desacordo com meu tempo, talvez me sentisse frustrada. Mas como me tornei adulta nos movimentos feministas por igualdade de gênero, ponho em prática o que aprendi. Gosto cada vez mais desta idade que me permite continuar sendo livre, sem ter que brigar o tempo todo pelo direito de sê-lo.
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