Ana Regina Reis*
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O feminismo no Brasil teve e tem aspectos bem interessantes quando a gente se lembra da história recente. Curioso esse traço da cultura brasileira, esquecemos os acontecimentos mais recentes. Nos meus contatos com as feministas européias, por exemplo, eu tinha a dimensão de como tínhamos oportunidades com que elas nem sonhavam. Tínhamos uma feminista falando livremente de sexualidade, cinco dias por semana, na principal rede de televisão, de 1980 a 1986, o TV Mulher, que começou ainda na ditadura.
As escolhas posteriores da Martha Suplicy , com as quais discordo, não me fizeram esquecer da enorme contribuição dela durante esse período. Para falar, em atendimento, com uma mulher sobre sexualidade, tínhamos que fazer mil rodeios . Depois do efeito Martha, muitas sentavam na cadeira e a primeira pergunta era: aquela moça na televisão que fala aquelas coisas disse que as mulheres gozam, é verdade?
Nem na terra da Beauvoir elas conseguiam isso. Com o PAISM, em Recife, por exemplo, as incríveis feministas do SOS Corpo faziam oficinas, nas capacitações dos médicos para a implantação do programa, onde elas discutiam a relação com as pacientes e colocavam os doutores em posição ginecológica para viverem um pouco a situação do lado das pacientes.Contando, mal se acredita, hoje.
Para mim, o movimento feminista é exemplo de como se pode mudar mentalidades, comportamentos e melhorar as vidas das pessoas, a partir de vivências no coletivo. Uma das características do movimento, nos anos 1970 e 1980 foi a dos grupos de reflexão, em que cada uma contava suas experiências e se via com as enormes diferenças de raça, classe, que pontos em comum existiam. O fato de ser um movimento horizontal, sem chefes,sem hierarquia, permitiu uma disseminação enorme.
Hoje, se você for a uma reunião nacional da Articulação das Mulheres Brasileiras ou da Marcha das Mulheres Brasileiras poderá ver a enorme capilaridade que o movimento conseguiu. Não foi por acaso que foi o único movimento no país que colocou 1 milhão de pessoas nas ruas no Ele Não. Como disse a historiadora francesa Michelle Perrot , o feminismo é o movimento mais vitorioso do século XX e não derramou uma gota de sangue.
Atualmente, fazemos, as feministas brancas, uma séria autocrítica ‘a nossa cegueira para a questão racial, pois a opressão e exploração das mulheres negras e a própria construção social de identidade de uma mulher negra é muito outra e elas têm toda a razão quando dizem que não se veem nos discursos e na historiografia das mulheres brancas. Mais recentemente, as mulheres indígenas estão demonstrando seu poder de organização e surgem com suas potentes falas no cenário nacional e internacional.
Caminhamos, mas o Patriarcado reage com sua habitual violência. Basta ver a destruição das políticas para mulheres, para a igualdade de raça e dos direitos da comunidades LGBTTQI+. A exacerbação do machismo, o cafajestismo solto e autorizado que anda por aí, de moto ou a pé.
Eu costumo chamar a atenção como essa história se repete, desde os anos 1930 na Alemanha e na Itália. Basta as mulheres se organizarem assim como as comunidades que afrontam a supremacia machista, para o tempo ficar feio. O fascismo é o viagra do Patriarcado, que está , mais que nunca ameaçado e decadente.
Esse livro que estou escrevendo pretende falar em linguagem de gente, sem os rococós acadêmicos ( perdão, mestras) sobre o que temos que enfrentar no dia a dia nesse mundo pensado a partir do corpo dos homens, dos seus interesses . Coisas aparentemente banais, como o desenho dos banheiros dos shoppings, onde você estaria ‘a vontade se fizesse xixi de pé e não andasse com bolsa. Ou do rapaz que vem instalar um armário na tua cozinha e quando você vai ver , para alcançar a prateleira de cima tem que chamar o artista, pois ele mediu pelo braço dele.
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São detalhes que vão dar nas Constituições, nos Códigos de Família, nos dress codes dos ambientes de trabalho, nas escolhas das chefias, das hierarquias eclesiásticas, militares e civis. Até nossos poetas mais queridos já disseram barbaridades nas românticas canções. A gente era distraída e repetia ” você tem que vir comigo no meu caminho e talvez o meu caminho seja triste pra você.”
O feminismo liberta os homens do pesado cargo que se impõem. Muitos estão se livrando disso, é altamente positivo isso estar acontecendo, uma alegria.
*Ana Regina Reis é médica
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