Márcia Lage
50emais
Dois dias depois do surto de “onde estou, de onde vim, pra onde eu vou,” Dolores já era outra pessoa.
Devia ter sido um trânsito astrológico retrógrado ou uma ligeira síndrome de pânico diante da decisão de se fixar numa nova cidade, sem nenhum amigo que a recebesse.
Durou pouco a falta de amigo. A moça com quem se hospedou pelo Airbnb, enquanto sondava um apartamento para alugar, era alegre, falante e generosa.
Tornaram-se ‘amigas de infância’ imediatamente, trocando confidências e experiências de vida.
Mesmo assim – e também para ir se inserindo no cotidiano da nova cidade – Dolores foi ao posto de saúde afim de agendar uma consulta com um geriatra.
Já estava na hora de ser acompanhada por um especialista em idosos, admitiu. Mas a consulta vai demorar um pouco.
Enquanto espera, Dolores buscou o Doctor Google, no YouTube, e pesquisou tudo sobre demência.
Encontrou muitos vídeos com os 10 sintomas iniciais da doença, que, essencialmente, são esses:
1) Andar arrastando os pés (não)
2) Surdez (não)
3) Esquecer palavras ao contar um caso (não)
4) Esquecer nomes de pessoas (sim, principalmente de atores e atrizes famosos)
5) Repetir o assunto (sim, mas com pessoas diferentes, a não ser na família, que ela acabava se esquecendo a quem contou o caso)
6) Perda de memória recente (mais ou menos, depende do vinho…)
7) Dificuldade para executar tarefas do dia a dia e resolver problemas simples (às vezes, mais por procrastinação do que por algum problema)
8) Confusão de tempo e lugar (só quando viaja e acorda num novo quarto demora alguns minutos para se localizar)
9) Dificuldade para tomar decisões (sim, quando o dinheiro é curto e tem que escolher entre satisfação e dívida)
10) Mudanças de humor e de personalidade (sim, sim, sim)
É no décimo sintoma que Dolores se encaixava melhor.
Estava deixando de gostar de um monte de coisas, lugares e pessoas.
Sexo, praia, viagens ao exterior, sapatos e roupas novas já não lhe interessavam há tempos.
Café, álcool, doces e chocolates só de vez em quando, e pouco.
As pessoas, essas iam se evaporando de suas necessidades afetivas.
Podia viver sozinha sem nenhum problema.
Guardou uns poucos amigos no coração e quando os encontrava ficava feliz.
Mas não se esforçava muito para isso e se cansava rápido dos saudosistas, dos queixosos, dos infelizes.
Dolores acha que a vida é boa, apesar dos riscos, e que ficar se lamentando demais só atrasa a caminhada.
O melhor é entender a marcha e seguir em frente, como resume bem a canção do Almir Satter.
O problema é que, além de não conhecer a estrada, não se reconhecia também.
Estava se tornando antissocial, reservada e calada, o oposto do que sempre tinha sido.
Pelo menos se via na demência silenciosa da avó, que não incomodou ninguém com seu mutismo.
Pior são os que não dormem à noite, falam até engasgar e pegam os interlocutores pelo braço, numa total manifestação de carência.
Uma amiga de Dolores, de 72 anos, herdou do pai a demência do falatório, da fixação por sexo e do pânico de ficar só.
Triste o quadro dela. E galopante. Da última vez em que se encontraram, foi impossível dialogar.
A outra parecia a Dory, a peixinha de Procurando Nemo, que esquece tudo em segundos.
É este o medo que Dolores está vivendo. O de não diagnosticar a tempo o Alzheimer e a doença se instalar, inevitavelmente.
Por que os outros tratam com desdém os sinais?
A família classifica de “doidice” qualquer atitude fora dos padrões e os médicos acham tudo “normal para a idade”, como se envelhecer fosse uma condenação à caduquice, à improdutividade, ao desinteresse intelectual e ao enrijecimento das pernas.
É preciso estar atento aos próprios sinais e aos sinais dos amigos e parentes, para evitar insanidades como a que cometeu uma pessoa que ela julgava apenas fora da caixinha, mas que se transformou numa mulher-bomba, depois de uma imprudência.
Conto a história no próximo domingo.
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