Márcia Lage
50emais
Casas são para os sãos e hospitais para os doentes. Não há um espaço intermediário para os convalescentes.
Dolores entrou no apartamento minúsculo, manobrando desajeitadamente a cadeira de rodas, alugada às pressas, quando a paciente recebeu alta.
A cadeira passava raspando entre os móveis, quase arrancava lascas na parede e entrava apertada no quarto.
Era um projeto até inteligente, feito para se encaixar no vaso sanitário e, ao mesmo tempo, funcionar como cadeira de banho.
Mas de nada adiantou, pois não coube no acanhado banheiro.
Tirar a paciente da cadeira e colocá-la na cama baixa, dos netos da casa, era trabalho para duas pessoas, no mínimo.
Um doente sem controle do corpo fica pesado, duro, não consegue colaborar.
Trocar fraldas de um adulto é tarefa difícil e desagradável para quem não é da saúde.
A família, ocupadíssima, tentou, em vão, encontrar lugares onde a paciente pudesse se recuperar em mãos mais habilidosas.
Não encontrou. O caso dela não se enquadrava em nenhum critério.
Então, teve que ficar no pequeno apartamento de uma das irmãs, com a ajuda de uma cuidadora.
Durou um mês a recuperação e a dona da casa quase ficou louca, vendo-se, repentinamente, sem espaço, sem privacidade, com o dobro de roupa para lavar, de comida para fazer, de café para a paciente e as visitas, as chegadas inesperadas das equipes de saúde.
Os hospitais públicos vigiam muito os pacientes de alta que precisam de cuidados continuados em casa, porque muitos familiares não têm como recebê-los e fogem da responsabilidade.
Deixam-os abandonados no setor de cuidados paliativos do hospital, onde costumam morrer como indigentes.
Por falta de lugares específicos para gente que se livrou da doença, mas permanece com sequelas, temporárias ou definitivas.
Lugares com jardins e Lagos, alamedas ensolaradas e um batalhão de cuidadores.
Também não há casas com portas largas e quintais aconchegantes, nem familiares enfermeiros ou com recursos para pagar pelas fraldas, pelos alugueis de equipamentos, pela ajuda profissional, que custa muito caro.
Num país que ainda não resolveu o problema das creches, aumenta a cada ano a demanda por casas de apoio para idosos.
A família da paciente chegou a pensar nessa hipótese. Impossível. O preço mínimo cobrado numa instituição caseira, sem nenhum espaço de convivência e lazer, é de R$ 4.500,00.
Nas instituições públicas/religiosas a aposentadoria do paciente é confiscada para ajuda de custo, mas, de maneira geral, são verdadeiros depósitos de velhos.
Iniciativas como condomínios habitacionais para a terceira idade, hospitais-dia para continuidade de tratamentos, prédios destinados a este público específico, com infraestrutura de lazer e serviços começam a ser criados.
Mas só para ricos. Para aqueles que podem pegar um avião e pagar por uma morte assistida em certos países europeus, que já chegaram a esse nível de investimento na velhice.
Ao fazer essas buscas Dolores foi ficando cada vez mais assustada. Sozinha e sem filhos, como outros cinco milhões de brasileiros, não sabe como se proteger do empobrecimento na velhice.
Desde os 50 anos que ela sonhava com uma comunidade familiar ou de amigos que se ajudassem mutuamente na terceira idade. Nunca deu certo.
No Brasil, Quase ninguém pensa no futuro com tanta antecedência. Agora, o futuro chegou. E o país não está pronto para recebê-lo.
Domingo que vem tem mais.
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