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Muito boa esta reportagem de Gustavo Werneck, para o Estado de Minas, sobre o tema da redação do Enem deste ano, que fala do “trabalho invisível” executado por um número enorme de pessoas, principalmente de mulheres.
Trabalho que é realizado. Mas ninguém repara, portanto, não há qualquer valorização não só do que é feito, mas da mão de obra por trás, por exemplo, do almoço, do jantar, da limpeza da casa, dos cuidados com as crianças, com o idoso.
O tema da redação do Enem pode ter parecido difícil para muitos dos estudantes, eles próprios sem consciência desse trabalho “invisível”. Mas chamou a atenção pelo menos de parte da sociedade para a grande importância de se debater o assunto.
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Olívia aprendeu a conjugar o verbo cuidar ainda bem novinha. De uma família de 10 filhos, ajudava a mãe a “olhar” os irmãos, lavava vasilhas, passava roupa e tratava das galinhas, enquanto aprendia a arrumar a casa e a cozinhar. Adolescente, começou a trabalhar em casas de família, e hoje, aos 42 anos, divide seu tempo entre o serviço de empregada doméstica e a atenção a três dos quatro filhos que vivem com ela. “Se eu fizesse a redação do Enem, tiraria nota 1000”, diz, com bom humor, a moradora de Santa Luzia, na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), sobre o tema proposto neste ano no Exame Nacional do Ensino Médio: “Desafios para enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil”.
Milhares de alunos voltaram, no domingo (12) às provas da segunda etapa do Enem, e Olívia Rodrigues de Oliveira espera, com paciência, o momento de ver a filha caçula, Luíza, de 6, e o neto, Arthur, de 7, ingressando na universidade. “Quero que tenham as oportunidades que não tive. O maior desafio na minha vida foi cuidar dos filhos dos outros e deixar os meus em casa. Foi pura necessidade, mas fico feliz de poder cuidar da minha família. Vale todo o esforço, pois depois do serviço, tem o segundo tempo, o de dona de casa”.
A invisibilidade citada no tema da redação já foi sentida muitas vezes por Olívia, mãe de Jaqueline, de 26, casada, João Vitor, de 25, Giovana, de 18, e Luíza. “Muita gente pensa que a roupa passada, o banheiro limpo, o chão varrido e a comida pronta caem do céu. O mundo está mudando, tem muito homem dividindo as tarefas domésticas, mas, no geral, ainda é a mulher quem faz praticamente tudo. Tenho sorte, pois na penúltima casa em que trabalhei e na que estou agora sou bem tratada, mas nem todos os patrões reconhecem nosso serviço.” Ao lado, Jaqueline, mãe de Arthur, revela que nunca faltou “atenção e carinho”, mesmo com a vida corrida de Olívia.
DESAFIOS No país, conforme o Censo 2022 recém-divulgado pelo IBGE, há 104,5 milhões de mulheres (51.5% da população), número superior em 6 milhões ao número de homens, totalizado 203 milhões de habitantes. Já conforme a Pesquisa Anual por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua Trimestral, em Minas, havia 648 mil trabalhadores domésticos no segundo trimestre de 2023, enquanto, no Brasil, 5,8 milhões. Na total nacional, a maioria é formada por mulheres (5,3 milhões).
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Entre as mineiras, está a diarista Silvana Luna de Carvalho, residente em Lagoa Santa (RMBH), encarregada da faxina em muitas casas na sua região e em BH. “Mesmo nesse universo tão grande, nós, trabalhadores domésticos, ainda nos sentimos apagados. E já senti isso na pele e no coração”, diz Silvana, que tem quatro filhos: Suellen, de 25, casada, Caio, de 21, Júnior, de 17, e Matheus, de 14.
Em décadas de vida profissional, Silvana, que cursou até o ensino médio, foi babá, instalou películas em vidros de veículos e residências e trabalhou no setor de Recursos Humanos e como auxiliar de escritório. “No tempo de babá, me sentia invisível, desconsiderada. A patroa fazia questão de não me ver. Na verdade, não me enxergava como indivíduo. Isso, querendo ou não, deixa a gente abalada emocionalmente”, observa.
De outro exemplo dessa invisibilidade, ela se recorda bem – e não se esquece porque marcou. Ao ir com a patroa ao shopping, empurrando o carrinho do bebê, viu que a mulher não gostou quando alguém lhe perguntou se as duas eram irmãs. “De imediato, ela parou numa loja e comprou um uniforme, maior até do que o meu número, e me obrigou a vesti-lo por cima da roupa. Era como se estivesse colocando uma capa para me esconder. Me senti a pior das criaturas”
Os desafios, no cotidiano, são frequentes, e Silvana está certa de que esse “cuidado” que a mulher recebe como missão é herança de outros tempos. “Todo trabalho é digno, ainda mais quando envolve afeto, carinho. Nossa função, a de cuidar, é importante na sociedade, pois alguém precisa olhar o bebê, arrumar a casa, fazer a limpeza. Então, que haja respeito, valorização”. Para facilitar sua vida, os três filhos já sabem cuidar da casa. “A única coisa que faço, hoje, é lavar roupa.”
EDUCAÇÃO Somente com a “educação pela igualdade de direitos”, incluindo tarefas domésticas compartilhadas entre homens e mulheres, será possível vencer os desafios da invisibilidade do trabalho feminino de cuidado, “pois, no Brasil, não se enxerga o trabalho de quem cuida”, afirma a advogada Isabel Araújo Rodrigues, especialista em direito das mulheres, presidente da Comissão de Enfrentamento à Violência Doméstica da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-MG) e integrante do movimento feminista “Quem ama não mata”, criado em BH, em 1980.
Historicamente, explica a advogada, a mulher é criada e educada, desde criança, para os cuidados de casa, tanto que ganham de presente “panelinhas, bebezinhos, casinhas”, enquanto os meninos, “bola, skate, carrinho, para brincar lá fora, na rua”. Assim, “as mulheres são instruídas, na sociedade patriarcal, para desempenhar um determinado papel, porque o cuidado é um serviço que não vai gerar custos para os homens”.
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O resultado do dito popular “amor não custa dinheiro” leva a prejuízos para as mulheres, pois, na verdade, “não gera qualquer encargo para os homens”. O efeito natural, portanto, é considerar “o trabalho de babás, empregadas domésticas, cuidadoras de idosos e das próprias donas de casa como subemprego, sempre relegados à informalidade”. O cenário ocorre permanentemente, com jovens e adultas sujeitas à baixa remuneração e desvalorização das atividades desempenhadas.
Outro ponto destacado pela advogada está na necessidade de maior compromisso dos homens. “Eles precisam ser responsabilizados, pois, na maioria dos casos, se limitam ao papel de provedor, de quem chega à noite em casa, liga a televisão e acha que já cumpriu sua função. Não pode ser negligente com a família, deve, sim, compartilhar os deveres, estar ligado à educação dos filhos.”
VOZES SILENCIADAS A professora da Faculdade de Educação (FAE) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Telma Borges, considera “muito interessante” o tema da redação “pela possibilidade de se dar visibilidade a pessoas tanto tempo silenciadas”. A situação de invisibilidade, diz a professora, decorre da estrutura social, das políticas culturais e de um projeto de sociedade, existentes no país, que calam vozes: “Mulheres, indígenas, camponeses não falam”.
O tema da redação impacta coletivamente, explica Telma, principalmente por “incomodar” certa camada da população que se recusa a tratar de assunto tão relevante para a sociedade. “É fundamental a valorização do serviço feito pela empregada doméstica, pela faxineira e por outras mulheres. Todos devem ser vistos, considerados. Todos que cruzam meu caminho merecem ser vistos”, afirma, com conhecimento de causa.
Antes de ingressar na graduação na Faculdade de Letras, fazer mestrado e doutorado e ser professora da FAE/UFMG, Telma trabalhou como empregada doméstica e faxineira. “Senti bem essa invisibilidade, ainda mais por ser negra”, diz a professora, citando uma passagem nessa trajetória. Certa vez, enquanto fazia as unhas, a patroa fez questão de demonstrar que nós duas, a manicure e eu, estávamos incomodando.”
Ciente de que todo ser humano merece ser respeitado, a educadora espera que, um dia, todas as diferenças, incluindo as de gênero e étnicas, sejam superadas em benefício do progresso da sociedade.
VERBO DA VIDA “Já cuidei de muitas pessoas na minha vida, graças a Deus. Do meu marido, quando ficou doente, do meu sogro, da minha sogra, do meu cunhado. Cuidar exige responsabilidade. Requer paciência, amor, sensibilidade, sabedoria e determinação para tomar providências a qualquer momento”, avalia Eva Maria da Silva Domingos, de 66.
Restrita às atividades do lar durante mais de 30 anos – “em casa, a gente trabalha nas 24 horas do dia”, observa Eva –, foi somente após a morte do marido, em 2011, que a moradora de Santa Luzia (RMBH) decidiu trabalhar fora. “Inicialmente, fui cuidadora de idosos. Mas o problema é ficar tão ligada às pessoas, que a gente sofre demais quando elas morrem”, diz a cuidadora, certa de que, além de valorização, a atividade precisa ser compreendida como um ofício de homens e mulheres.
“Se desde pequenas as crianças fosseem educadas para um novo mundo, em que a questão de gênero não é diferença, mas símbolo de união, já poderíamos ter vencido o desafio da invisibilidade. Todos nós, homens e mulheres, podemos e sabemos conjugar o verbo cuidar”, garante Eva, abraçada à neta Ana Clara, de 8 anos, que fica em sua companhia durante a ausência dos pais.
TAREFAS Especialista em análise do discurso, a professora titular da FAE/UFMG, Míria Gomes de Oliveira, afirma que, diferentemente dos homens, as mulheres têm uma percepção, desde cedo, das tarefas domésticas. Não porque queiram, mas pela imposição social. “Existe uma divisão de gênero na organização social do trabalho, determinada desde os primeiros anos, no meio em que os meninos e as meninas crescem. Às meninas, cabem certas tarefas domésticas e de cuidado com o outro. Isso não é dito, mas ‘internalizado’. Infelizmente, o homem não é educado nem para cuidar dele mesmo.”
Na vida urbana, diz Míria, é preciso entender que o cuidado faz parte do amor. “Quem ama cuida das necessidades físicas e emocionais do ser amado. As crianças aprendem que o pai não deve se meter no serviço doméstico. E por quê? Por que uma tarefa é tida como feminina? Todos devem fazer sua parte a fim de fortalecer, e não esvaziar, as relações humanas”.
PASSADO E PRESENTE A trajetória de Olívia, Silvana, Eva e tantas outras brasileiras tem raízes no passado, com a herança sociocultural vinda dos tempos do Brasil colonial, e no presente, com a falta de regulamentação da legislação trabalhista. “Trata-se de uma questão histórica, que afeta todos os trabalhadores (homens e mulheres) domésticos, com entraves na atualidade”, explica o cearense Emerson Brito, formado em finanças na Universidade Federal do Ceará (UFC) e residente em Belo Horizonte.
Autor de “O trabalho doméstico no país: uma análise da relação entre a regulamentação e a informalidade a partir dos dados do Pnad Contínua Trimestral”, como conclusão do curso na UFC, Emerson explica que a situação de “invisibilidade” decorre, em grande parte da burocratização das leis trabalhistas, que, por não serem divulgadas nem muito claras, fazem com que os trabalhadores abdiquem dos seus direitos, e os empregadores não cumpram seus deveres.
“É um assunto complexo, com adversidades que podem levar à extinção desse tipo de serviço, a exemplo do de empregadas domésticas. Sem ampla divulgação do processo de regulamentação da atividade, as pessoas buscam sobrevivência na informalidade. Além disso, a facilidade de acesso ao ensino e à escolarização tem sido o caminho usado pelas pessoas para contornar a necessidade de trabalhar no setor. É necessário que haja maior maior divulgação para esclarecimento de ambos os lados, empregado e empregador.”
Em resumo, alerta, a regulamentação eleva os custos tanto para o empregado quanto para o empregador, por isso estimula a informalidade. Uma dificuldade a mais para quem vive de cuidar e nem sempre é reconhecido por isso.
Ministério avalia política específica
O debate e a repercussão do tema relativo à invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil pode elevar os direitos de quem cuida a um novo patamar. A secretária nacional de Cuidados e Família, Laís Abramo, do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, informa que a função de quem cuida deverá ganhar uma política própria em 2024, com um marco normativo para reconhecer direitos.
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