Dói-me mais assistir ao envelhecimento dos meus pais do que me confrontar no espelho dos dias com minha própria decadência. A velhice dos meus pais me parece um ultraje à própria vida. Quando falo da velhice estou a pensar no retrato que Jacques Brel fez dela numa belíssima canção, “Les Vieux”, que tantas vezes me visita enquanto tento adormecer:
“Les vieux ne bougent plus
Leurs gestes ont trop de rides
Leur monde est trop petit.
Du lit à la fenêtre
Puis du lit au fauteuil et puis
du lit au lit.”
Com perdão pela má tradução: “Os velhos não se mexem mais / Os seus gestos têm muitas rugas / o seu mundo é pequeno // Da cama à janela / depois da cama ao cadeirão / e depois da cama à cama.”
Pais não deviam envelhecer. Ao menos, os bons pais. Aliás, a velhice deveria ser um castigo destinado exclusivamente às pessoas más. Cada vez que alguém cometesse uma maldade, receberia uma ruga, seis ou sete cabelos brancos, e depois cefaleias, artrites, reumatismo, incontinência urinária, impotência e declínio cognitivo. Dentes cairiam (como minha avó ameaçava) a cada vez que mentíssemos; enfim, dependendo da gravidade das mentiras. Os canalhas, e só os canalhas, sofreriam de tremores e crescentes lapsos de memória.
Um mundo organizado dessa maneira evitaria inúmeros equívocos e dificultaria a ascensão política dos muito maus.
Voltando ao envelhecimento dos pais, talvez a aflição seja maior porque nos habituamos a olhar para eles como super-heróis, imunes à corrosão do tempo, e às fragilidades, defeitos e erros das pessoas comuns.
Minha mãe sabia de cor as datas de aniversário não só dos filhos e netos, mas de todos os sobrinhos, afilhados, primos e restantes parentes. Também sabia o número de telefone de todos nós. Depois que sofreu um AVC (gravíssimo) esqueceu tudo isso, e até o nome de muitos parentes, embora ainda seja capaz de declamar os sonetos mais famosos de Luís de Camões.