
“Falo excessivamente de mim querendo chegar, com açúcar, com afeto, à música, que, para minha tristeza, você não mais cantará. Dizem por aí que você assim decidiu. Canto eu, irremediavelmente desafinada”
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Desde que Chico Buarque anunciou que não vai mais cantar a bela “Com Açúcar, Com Afeto, composta na década de 60, a pedido de Nara Leão, abriu-se um verdadeiro debate sobre a atitude dele – motivada por queixas de que a música é um hino ao machismo e à subserviência da mulher. Muito se tem escrito. Mas nada do que li até agora tem a contundência, a força desta Carta a Chico Buarque, escrita em Goiânia e assinada por Ana Lúcia Vilela na Revista Caliban, editada em Portugal. “Essa mulher que espera seu homem, essa mulher que lhe faz o doce preferido sabendo que o açúcar nada pode contra o apelo das peles coloridas das outras, essa mulher que sabe e prefere ignorar as inverdades desse homem, essa mulher sou eu,” diz ela em certo trecho desse esplêndido texto.
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Goiânia, madrugada de 28 de janeiro de 2022.
Querido Chico,
Cresci te ouvindo, nessa compreensão incompreensível de quem ouve e insiste no perigo de mirar a agulha naquela exata faixa do vinil. Cinco, dez vezes. O gesto repetido, entretanto, não permitia distinguir o que toca, apunhala e acaricia. E ali, naquele lugar de aconchego e desespero, sua música me abraçava. Dois, três, quatro, cinco, seis anos de idade. Nasci em 1972, de pais clandestinos. Sua música era, para mim, o lar constante nas casas alternadas, nas mudanças irremediáveis, imprevisíveis, misteriosas.
Pedaço de mim é minha música (sim, ela é minha, apropriei-me dela, desculpe-me o atrevimento) mais odiada porque não consigo ouvi-la sem que o mundo se desfaça e eu me perca em suas ruínas atemporais. Não te esqueci na adolescência, embora a fúria poligâmica proporcionada pelos revoltosos hormônios fizesse minha alma e meu clitóris tremerem por outros e outras. Qual o quê! Pouco importa. Você era o lar infantil que não tive, a constância na inconstância; mas nunca, penso agora, a previsibilidade. Você, quero dizer, sua música — mas também sua figura, sua imagem — era levada para todas as cidades, bairros e estados, esses lugares onde me sentia perdida, sem nome, sem norte e sem eixo.
Não fui educada, de modo algum, para ser esposa, recatada e do lar. Cresci no vazio imenso, aberto entre um mundo por fazer — uma sociabilidade nova, revolucionária, libertadora — e as censuras e castrações desse mundo doloroso e excitantemente real. Devo dizer: cresci aberta, embora não saiba, até hoje, o que isso significa. Talvez, essa fenda seja uma ferida. Talvez, seja a fresta por onde se pode olhar o proibido. Cresci entre a imaginação fervilhante de larvas da arte, o devir utópico e as opressões de todo dia. Nesses vãos você se instalou.
Falo excessivamente de mim querendo chegar, com açúcar, com afeto, à música, que, para minha tristeza, você não mais cantará. Dizem por aí que você assim decidiu. Canto eu, irremediavelmente desafinada. Não assisti ao documentário sobre Nara Leão. Não ouvi de sua boca que não mais a cantará. Se a reportagem da Globo foi fidedigna às suas palavras, você teria dito que “não passava pela cabeça da gente que isso era uma opressão, que a mulher não precisa ser tratada assim”. Se é isso mesmo, gostaria de lhe dizer como essa música aporta em mim, nesse ínfimo lugar, em minha abertura. Essa mulher que espera seu homem, essa mulher que lhe faz o doce preferido sabendo que o açúcar nada pode contra o apelo das peles coloridas das outras, essa mulher que sabe e prefere ignorar as inverdades desse homem, essa mulher sou eu.
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Também sou eu esse homem que sai de casa com seu melhor terno para ir à oficina. Sou esse homem que discute futebol, rememora e comemora nos bares das esquinas com os amigos provisórios dos copos de cerveja. Sou eu esse homem que deseja as mulheres ociosas das praias, que canta bêbado e volta para casa, maltrapilho e maltratado, mamado, chumbado e atravessado, para ser acolhido por uma mulher que o quer e aceita. Sobretudo, sou esse homem que nada sabe de si, que ignora seu próprio desejo. Esses dois se encontram nesse lar, onde uma permanece e o outro retorna. Se encontram no desencontro de seus desejos.
Não sei o que o feminismo tem a dizer sobre isso. E, creio, há muitos feminismos. Mas sei que essas paixões, essas errâncias do desejo, essa inviabilidade do amor, isso tudo não diz da opressão. Isso grita do fundo da alma humana; essa que é contraditória, incompleta e bela em suas imperfeições. Sua música, meu estimado amigo (permita-me tratá-lo assim), não está presa ao tempo das mulheres donas de casa, reféns de maridos que dizem sustentá-las. Sua música foi semeada no campo dos desejos humanos, demasiadamente humanos, e, incontornavelmente, brota.
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