
Márcia Lage
50emais
Postada no grupo de conversa da família, a foto parecia um tabuleiro com grãos de feijão preto. O texto da legenda esclareceu “Estava incomodada aqui com algum vizinho que, supostamente, tinha esquecido alguma coisa no forno. Mais de duas horas sentindo o cheiro de queimado até que a fumaça invadiu toda a casa. Só então me lembrei do amendoim que tinha posto para torrar. Virou carvão. Diante disso, meu perdão aos que esquecem filhos no carro.”
O post mereceu comentários diversos dos irmãos, todos maiores de 50 anos: “Que medo de ficar assim”, disse um de 56. A caçula da família, que acabou de fazer 51, escreveu: “Aposto que você estava no celular. Devemos evitá-lo quando estamos fazendo algo assim. Celular tira o foco da gente”.
Aproveitando a deixa, uma, que é da área de saude, afirmou: “Você não estava presente quando colocou o amendoim para torrar. É preciso estar presente. Treine a atenção plena. Nós estamos envelhecendo, é importante treinar!”.
A atenção plena (ou mindfulness em inglês), é um termo tomado emprestado ao Zen Budismo, que instituiu a meditação como prática popular, para aquietar a mente.
O resultado objetivo é não misturar afazeres nem pensamentos. Hora de cozinhar, cozinhar. Hora de rezar, rezar.
O mundo moderno, com todo seu aparato de tecnologia, incentiva exatamente o oposto: cozinhar vendo Internet, fazer exercícios assistindo TV, caminhar ouvindo música, dirigir e telefonar; conversar com um e responder mensagens de outros.
Não é preciso ser Zen Budista para concluir que não dá certo. É por isso que o hábito da leitura está cada vez menos presente na vida das pessoas. Ler é uma atividade que exige atenção plena.
Ao perceber que múltiplas atividades ao mesmo tempo provocam estresse, acidentes, prejuízos e consequências mais sérias, como o caso de crianças esquecidas em carros que a autora dos amendoins queimados relembrou, a questão da falta de atenção extrapolou da religiosidade budista para a pesquisa científica.
Li no wikipédia que “um grande número de autores e pesquisadores, entre eles o médico Jon Kabat-Zinn e os psicólogos Marsha M. Linehan e Steven C. Hayes, todos norte-americanos, vêm se dedicando ao trabalho de oferecer para a meditação um referencial teórico científico, possibilitando assim seu uso terapêutico, independentemente da conceituação religiosa budista, abrindo sua prática para um público mais amplo”.
A luta, no entanto, é inglória. Ao mesmo tempo em que psicoterapeutas propõem atividades de Yoga e de meditação para um desligamento temporário da mente inquieta, como modo de prepará-la para o foco preciso nas atividades do cotidiano, a indústria eletrônica e a tecnologia da informação trabalham no sentido oposto.
Criam objetos que liberam a mente humana do trabalho de pensar, raciocinar, focar, reagir, entender, concluir, etc. Aplicativos de comando de voz, por exemplo, fazem com que as pessoas já não precisem mais de digitar, pesquisar, acender luzes, ligar a TV.
Os contatos estão na agenda digital, ninguém decora mais o número de telefone de ninguém. Tampouco faz conta. Ou anota num caderninho os compromissos do dia a dia.
Embora tudo isso, teoricamente, devesse aumentar o tempo livre para atividades relaxantes e prazerosas, cada vez mais perdemos tempo numa infinidade de estímulos que nos conduzem para mais longe de nosso bem-estar emocional.
Voltando ao amendoim queimado, uma das irmãs deu o veredito para a salvação das mentes desfocadas.
– “Calma, gente. Eu, que não cheguei aos 60, já esqueci granola no forno, porque fui fazer outra coisa. O problema é do forno, não da gente. Queremos timer já”!
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