Déa Januzzi
Um dia, ainda vou construir um asilo para velhos. Mas a primeira medida que vou tomar será achar um outro nome para asilo, que não lembre morredouro, como proclamou Simone Beauvoir, no livro Envelhecer, para definir um lugar onde os velhos são depositados para morrer. Não vou mudar só o nome, mas também a filosofia. Vou pintar as paredes do asilo com as cores do arco-íris, abusar dos amarelos, laranjas e vermelhos. Vou abolir os azulejos brancos, insípidos, frios como lápides. Colocar girassóis nas janelas. Vou plantar grama por toda a parte interna da casa, para que os velhos andem descalços e sintam a relva roçar os pés como cócegas.
No asilo que vou construir haverá quintal, jardins e árvores por todos os lados. As janelas estarão sempre abertas para o vento que vai entrar pelos cômodos, passear pelos cabelos dos idosos, levantar as saias e os chapéus, arejar os corações com o aroma das manhãs. Colocarei uma fonte luminosa em cada corredor. Nada de bingo e orações em excesso. Os idosos da minha comunidade vão pintar sóis ao despertar de cada dia, com os próprios pés, que serão mergulhados em baldes de tinta. O ritual será como um escalda-pés de cores. Vou ungir os velhos com a minha fé num mundo novo. No meu asilo, que definitivamente não terá esse nome, não permitirei capelas por todos os lados, como se os idosos já estivessem à beira da morte. Nada de missa demais, cânticos de qualquer igreja, com honrosa exceção para o canto gregoriano dos monges beneditinos, pois os idosos precisam de bancos ao ar livre e não de sepulcros.
Vou pintar o teto de azul e colocar estrelas fosforescentes, para que eles durmam com os olhos nas constelações. Não haverá escuridão nem gritos depois que as luzes se apagarem, mas o brilho das estrelas do teto, sob o ruído suave e persistente das fontes. Todos os idosos poderão ter um animal de estimação, um pássaro, uma tartaruga, um cão, um gato. Mesmo que de pelúcia. Todos poderão verter lágrimas. O choro será livre, em nome dos filhos que os abandonaram sem deixar endereço. Haverá o dia de chorar pelos filhos que enterraram os pais vivos nos asilos. Neste dia, todos os idosos poderão xingar, gritar, deixar toda a raiva sair para fora, como um mar de ondas revoltas.
Os almoços serão sempre festivos e a comida terá um sabor especial, com temperos suaves. Não dispensarei alho, cebola, manjericão, alecrim, sálvia, salsinha, cebolinha. Com gosto de viver, para que o paladar se torne cada vez mais apurado. Nada de pratos de alumínio ou de plásticos. Os idosos vão comer em pratos que escolherão. Haverá o dia da sobremesa que tem gosto de infância, como ambrosia, arroz doce, bala delícia, brigadeiro, amor em pedaços.
O café da manhã será uma celebração. Amanhecer na velhice é mais do que um privilégio, é festejar mais um dia de vida, mais uma dádiva, que será posta na mesa junto com o café com leite, pães feitos por Magui, no Sítio Sertãozinho, com ervas e boas intenções, além de iogurte, cereais, mel e frutas. O café da manhã vai durar uma eternidade. Será uma espécie de ritual, com músicas da nova era para despertar os sentidos. Depois, haverá aulas de alongamento e todos irão para o jardim, tomar sol e brincar. Haverá até um quarto de brinquedos, pois os velhos se tornam crianças. É a idade do desconhecimento, de falar e de fazer o que tiver vontade. Que o diga dona Conceição, de 75 anos, que vive num asilo da capital. Ela não se desgruda de uma enorme boneca de borracha. Ela só encontrou a paz da velhice, depois que teve uma boneca entre os braços, para cuidar, proteger, ser útil. A boca entreaberta da boneca revela que Conceição não a deixa com fome. Pedacinhos de pão escorregam pela boca da bonequinha.
No meu asilo, que não terá esse nome definitivamente, não será pecado envelhecer, ter rugas e cabelos brancos. Para isso, vou pedir ajuda aos contadores de história, aos Doutores da Alegria, aos Anjos da Dança, aos terapeutas de Alexandria e holísticos, aos tanatologistas, aos psicólogos das oficinas da memória, aos mágicos, palhaços, aos artistas, para que se revezem no ofício de transmutar a vida. No meu asilo, que não terá esse nome definitivamente, os velhos vão poder namorar, casar, separar, porque o sexo não é coisa de jovem. O desejo não envelhece nunca.nem morre. Haverá bangalôs para os casais enamorados, a praça do footing, da pipoca e do algodão-doce e até um parque de diversões, com lago e patos. Haverá saraus de poesia, com declamação de poemas longos, infindáveis.
Os jovens farão de seus braços bengalas para os velhos. Juntos, eles caminharão pelas alamedas, serão companheiros nessa viagem pelo tempo de viver. O passado e o futuro, sem confronto, porque o respeito será traduzido em abraços, rodas de conversas, música, malabarismo e até fogueiras nas noites de inverno, com canjica, quentão e quadrilha. E, quem sabe, um copo de vinho tinto. Haverá óleos essenciais para massagens curativas. Os corpos dos velhos exalarão o doce perfume de sândalo.
Eles poderão rabiscar as paredes. Cada morador dessa comunidade poderá levar para o seu quarto, lembranças de antigas casas: panelas, porta-retratos, quadros, cadeiras de balanços, xícaras de porcelana, cristais, álbuns de fotos, linhas, baús, xales, tudo o que levar ao aconchego, todas as recordações afetivas. Ninguém poderá destituir os mais velhos de seus pertences e recordações. Nessa comunidade, com certeza, eu levaria até a minha mãe, para morar no andar debaixo do meu sótão, bem junto de mim. Quando eu estiver lá em cima, escutarei o barulho da cadeira de balanço a ranger ternura, exalar história e sabedoria por todas as frestas desse asukim que não terá esse nome nem cheiro de solidão.
Esta crônica foi publicada originalmente no jornal Estado de Minas