Uma reportagem brilhante de Adriana Ferraz e Natália Santos para o Estadão, dando um retrato do atraso do Brasil quando o assunto é mulher na política. A imagem que fica depois da leitura é desalentadora. Desde 1932 que nós, mulheres, podemos votar. Mas o tempo vem mostrando que estamos deixando a política para os homens. Só dá eles desde 1500, quando Cabral desembarcou na Bahia. Em 2022, temos apenas 15% das cadeiras da Câmara Federal ocupadas por mulheres. Nada pode justificar essa subrepresentatividade. Ate por que, em termos populacionais, as estatísticas favorecem o sexo feminino: a população brasileira é composta por 48,2% de homens e 51,8% de mulheres. Entre os mais de 10 pré-candidatos a Presidente da República, nas eleições de 02 de outubro próximo, há apenas uma mulher: senadora Simone Tebet, representante do Mato Grosso do Sul, do PMDB. Por quê?
Entenda melhor lendo a reportagem:
A conquista do voto feminino no Brasil completa 90 anos sem que as mulheres tenham conseguido preencher 4% das 10.658 vagas disputadas na Câmara dos Deputados ao longo das últimas 20 eleições. Desde 1932, quando o Código Eleitoral decretado por Getúlio Vargas permitiu que mulheres votassem e fossem votadas, só 414 mandatos femininos foram registrados. No Senado, a sub-representatividade é ainda maior. Até hoje, só 45 vagas foram ocupadas.
As estatísticas são reflexo de um histórico de desigualdades que começou a ser enfrentado relativamente cedo, mas que ainda está longe de ser vencido ou ao menos equilibrado quando se trata de política. Atualmente, apenas 15% das cadeiras da Câmara são ocupadas por mulheres. Isso apesar de a maioria da população brasileira ser feminina, assim como 52,6% do eleitorado.
O domínio numérico não se traduz em mandatos vencidos ou quantidade de candidaturas também para cargos no Executivo – atualmente, apenas uma mulher exerce a função de governadora, a petista Fátima Bezerra, do Rio Grande do Norte. Se Fátima se reunisse para uma foto oficial com os demais governadores, o resultado seria idêntico ao revelado 88 anos atrás, durante a posse da 36ª legislatura na Câmara Federal. Naquela eleição, Carlota de Queirós foi a primeira e única a ser eleita :
Coincidência ou não, o Rio Grande do Norte exerce nesse campo um pioneirismo histórico. Foi lá que se registrou a primeira eleitora do Brasil, assim como a primeira prefeita eleita, em 1928. Mas a luta sufragista começou bem antes, ainda no século 18, e se deve à resiliência de mulheres feministas ainda pouco conhecidas e valorizadas na história política nacional.
Linha do tempo
Deputados abordam o voto feminino pela primeira vez
Os deputados José Bonifácio de Andrada e Silva e Manuel Alves Branco reivindicam o voto feminino em projeto eleitoral.
José de Alencar defende o direito da mulher votar
O deputado e escritor José de Alencar publica a obra O sistema representativo, na qual defende o voto feminino.
Jornal A Família começa a circular
Começa a circular o jornal sufragista A Família, editado por Josefina Álvares de Azevedo, que se une a outros jornais editados por mulheres pelo direito de votar.
A primeira derrota
O voto feminino é rejeitado durante a primeira Assembleia Constituinte do País.
Líderes sufragistas criam o Partido Republicano Feminino
Registrado o Partido Republicano Feminino, presidido pela professora Leolinda de Figueiredo Daltro. Seis anos depois, ela encabeça um abaixo-assinado ao Senado pelo direito de sufrágio.
Luta pelo voto da mulher avança no mundo; EUA aprovam emenda constitucional
A Câmara dos Deputados dos Estados Unidos aprova o voto feminino. Mulheres começam a obter vitórias também na Europa e na América Latina.
Entidade passa a atuar em todo o País defendendo o voto da mulher
Registrada a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, de inspiração feminista e presidida por Bertha Lutz. Congresso feminista é realizado no Rio
Mulheres se alistam como eleitoras pela primeira vez
Professora Celina Guimarães se torna a primeira mulher a votar no Brasil e na América do Sul. Ela se alista no Rio Grande do Norte.
Eleita a primeira prefeita do Brasil
Alzira Soriano toma posse como prefeita de Lajes (RN), com 60% dos votos. É a pioneira no Brasil. Fica no cargo até o início da Era Vargas.
Comissão formada por Vargas sugere voto feminino, mas restritivo
Juristas escolhidos por governo provisório apresentam projeto de reforma eleitoral com voto feminino, mas restrito às solteiras e viúvas.
Revolução de 1932 atrai mais o interesse das mulheres pelo voto
Movimento contra o governo Vargas atrai mulheres para confecção de fardas e socorro médico aos soldados. O clima faz crescer o movimento sufragista e a pressão sobre os políticos.
Feministas criticam texto e exigem mudanças
Entidades comandadas por mulheres reivindicam novo texto para a reforma eleitoral encomendada por Vargas, sem distinção entre votos feminino e masculino
Voto feminino integra novo Código Eleitoral
Mudanças são aceitas e, em 24 de fevereiro, Vargas edita o decreto que cria o novo Código Eleitoral. Nele, mulheres alfabetizadas, com 21 anos ou mais, sem restrição quanto ao estado civil, podem alistar-se como eleitoras.
Médica paulista é eleita primeira deputada federal
Na primeira eleição com voto feminino, para a formação da Assembleia Constituinte, a paulista Carlota de Queirós é eleita a primeira deputada federal do País. No ano seguinte, manteve-se no cargo.
Professora toma posse como primeira senadora
A paulista Eunice Michiles se torna a primeira senadora do País ao assumir o mandato de João Bosco, morto três meses após a eleição em decorrência de um AVC. Eunice havia ficado em segundo lugar nas urnas e, por isso, foi diplomada senadora pelo Amazonas, o Estado onde escolheu morar.
Eunice Mafalda Berger Michiles foi a primeira senadora do Brasil, representando o estado do Amazonas. Hoje, ela está com 92 anos. Foto de 1979
O ineditismo de Celina Guimarães, a resiliência de Bertha Lutz e o pioneirismo de Carlota de Queirós e de Alzira Soriano – entre muitas outras mulheres que se tornaram símbolo da luta pelo voto no Brasil – não foram acompanhados, segundo analistas ouvidos pelo Estadão, de uma disposição política para fazer com que o voto das mulheres se transformasse em representação feminina.
Se o Brasil teve sua primeira deputada em 1933, a primeira senadora veio 46 anos depois. Só em 1979 é que Eunice Michiles assumiu uma cadeira na Casa. Aos 92 anos, ela se recorda que foi recebida com flores e poesia.
Eu sentia muito carinho, mas pela ‘dama’ e não pela ‘colega de trabalho’. Eu sentia claramente isso.
Eunice MIchiles, primeira senadora do Brasil
Hoje aposentada da política, ela conta que a adaptação ao ambiente do plenário, que nem sequer tinha banheiro feminino, foi um processo intenso. “Eu me sentia muito apavorada, mas, com o tempo, consegui sentir que estava fazendo o meu caminho e dando o meu recado.” Progressista, Eunice defendia a liberdade religiosa e o direito de a mulher planejar ter ou não filhos.
Para a senadora e única pré-candidata à Presidência da República em 2022, Simone Tebet (MDB-MS), o preconceito contra as mulheres acabou no Senado, mas a luta feminina segue também por lá.
Eu acho que não há mais essa palavra preconceito, principalmente de oito anos para cá. O que existe é uma violência política velada.
Simone Tebet, senadora (MDB)
Segundo Simone, essa violência está inconsciente nos colegas. “Eles nem sempre percebem a violência que provocam quando interrompem a mulher numa reunião. Nessa hora, o burburinho aumenta e é preciso que a gente eleve a voz ou às vezes até bata na mesa.”
A cientista política Graziella Testa, da Escola de Políticas Públicas e Governo da FGV, afirma que as pioneiras da política brasileira não conseguiram gerar uma trilha para que outras mulheres também passassem e, segundo diz, em função da concentração de renda.
O voto dependia disso, era uma questão de renda mesmo. Em 1932, o índice de analfabetismo era muito alto.
Graziella Testa, cientista política
O curioso, de acordo com Graziella, é que, mesmo com o sufrágio se expandindo (deixa de ser facultativo em 1946), as mulheres vão ficando para trás e isso em função da demora do País em adotar iniciativas de incentivo. “Elas são muito recentes e vergonhosamente tardias”, diz.
Atraso que é estampado em todos os rankings. Um deles, elaborado pela União Interparlamentar (IPU) após as eleições de 2018 e focado em cargos no Legislativo, coloca o Brasil na 133ª posição de uma lista com 193 países. O modelo de cotas para candidaturas e não a reserva de cadeiras – escolha feita por países como Suécia e Espanha – nos deixa na antepenúltima posição na América Latina, quando o tema é participação feminina na política, segundo critérios da ONU Mulheres.
Graziella defende a adoção, no Brasil, da reserva de cadeiras e não apenas a obrigatoriedade de 30% de candidaturas, 30% de recursos para mulheres e voto feminino contabilizado em dobro para cálculo do fundo eleitoral – os três incentivos em vigência.
“E é bom deixar claro que há desenhos possíveis para a adoção da reserva de cadeiras no nosso sistema eleitoral. Não é preciso adotarmos a lista fechada, como fazem outros países. A verdade é que não existe um modelo ideal, mas várias possibilidades, como calcular o quociente eleitoral de outra forma para mulheres.”
Para a deputada federal Tabata Amaral (PSB-SP), o avanço registrado nos últimos anos é muito lento, mas pode ser acelerado a partir da regra que dobra o valor do voto feminino no cálculo do fundo eleitoral. Isso, segundo ela, leva os partidos a buscarem, encontrarem, apoiarem e incentivarem mulheres que já são líderes em seus grupos.
As mulheres são tão interessadas pela política quanto os homens, são tão talentosas quanto os homens. O que falta é incentivo, é apoio.”
Tabata Amaral, deputada federal (PSB)
Primeira vereadora trans de São Paulo, Erika Hilton (PSOL) diz que está na hora de o Brasil ter uma lei que de fato incentive a mulher a se posicionar politicamente e ajude a quebrar os ataques sistêmicos em relação àquelas que já participam da vida pública.
Essas mulheres são perseguidas, ameaçadas, silenciadas e têm seus projetos boicotados. São ainda assediadas porque os homens acham que aquele espaço é deles.
Erika Hilton, vereadora de São Paulo
O sentimento de Erika não é novo. Josefina Álvares de Azevedo, uma das principais sufragistas brasileiras, já escrevia em 1888, nas páginas de seu jornal, A Família, que “a igualdade entre os sexos seria o único caminho para a evolução da Pátria” e que seu desejo era ver a mulher brasileira se tornar “instruída e livre”. E, logo no primeiro exemplar, chocou ao falar de política.
“A mulher em tudo deveria competir com os homens, seja no governo da família ou na direção do Estado”.
Josefina Álvares de Azevedo, uma das principais sufragistas brasileiras
Os poemas e editoriais escritos pela jornalista pernambucana viraram peça de teatro – Voto Feminino – e guiaram uma legião de feministas no Brasil. O resultado demorou, mas veio.
Feministas comandaram luta pelo voto
Conheça algumas das mulheres que fizeram história no movimento sufragista brasileiro.
LEOLINDA DE FIGUEIREDO DALTRO
(1859 – 1935)
Responsável pela fundação do Partido Republicano Feminino, em 1910, Leolinda foi uma professora e indigenista baiana que dedicou sua vida à defesa dos direitos das mulheres, especialmente o voto. Ganhou notoriedade ao obter o apoio no começo dos anos de 1900 do então presidente Hermes da Fonseca.
CARLOTA QUEIRÓS
(1892 – 1982)
Carlota Pereira de Queirós foi a primeira mulher eleita deputada federal do País. Médica paulista, ficou conhecida por liderar um grupo de 700 mulheres que prestaram assistência aos feridos da Revolução de 1932.
ALZIRA SORIANO
(1897 – 1963)
Foi a primeira prefeita eleita no País. Herdeira de fazendeiros e representante da elite política de Lajes (RN), somou 60% dos votos e governou de 1929 até o início de Era Vargas, cerca de um ano depois.
Gloria Steinem: símbolo maior da luta feminina por igualdade