Maya Santana, 50emais
Um dos fatos que abalaram o Brasil na semana que passou foi a morte repentina e trágica do jornalista Ricardo Boechat, aos 66 anos, em um acidente de helicóptero, em São Paulo. O país, acostumado a ver e a ouvir todos os dias o jornalista combativo – de manhã, no rádio, e à noite, na televisão -, sentiu seu desaparecimento. No meio de todo aturdimento, surgiu uma luz: a argentina Mercedes Carrascal. Durante o velório, aos 87 anos, a mãe amada pelo apresentador, deu uma entrevista. Sua fala lúcida, louvando as qualidades do filho e explicitando o Brasil das desigualdades e das injustiças contra o qual Boechat lutava, conquistou os brasileiros. Foram muitas as homenagens a Mercedes Carrascal. Uma delas é este texto de Dorrit Harazim, publicado pelo Globo e que o 50emais reproduz aqui.
Leia:
De pouco adianta reproduzir na íntegra, palavra por palavra, o depoimento de Mercedes Carrascal no velório do filho. Para captar a dimensão humana dessa senhora de 87 anos que acaba de perder o segundo de seus sete filhos, seria necessário vê-la por inteiro, ouvir as infinitas nuances de sua voz dolorida e firme. Felizmente, os 8min e 11s do depoimento estão imortalizados na internet. Ainda assim, este espaço pede licença para deixar registrada também em versão impressa a lucidez dessa argentina que emana humanidade em momento tão brutal de sua vida.
Ficará faltando muito do tanto que nos ensina a mãe do jornalista Ricardo Boechat, morto há uma semana em desastre de helicóptero em São Paulo. Mas é uma forma de homenagear ambos.
Pergunta da mídia: Quem era o Boechat para a senhora?
Dona Mercedes: “Um dos meus bebês… Foi um patinho feio, nasceu feinho, mas já com dois meses era um bebê muito bonitinho: bocão grande, olhinhos muito vivos, carinha muito cor de rosa, carequinha…
Era um menino despachado, um menino do qual os velhos gostavam muito porque ele gostava de falar com as pessoas de idade, de perguntar coisas, e nós velhos gostamos de contar — vocês estão vendo como eu estou aqui contando…
Eu tive sete filhos… tinha. Ficaram seis vivos… agora só ficaram cinco… Tenho orgulho de todos, cada um num sentido… Quando me diziam ‘Ah, você é mãe do Boechat?’, eu perguntava ‘de qual deles?’, porque todos são meus filhos e para mim todos têm o seu peso no meu coração. Eu sou uma leoa como mãe. Se tiver de defender qualquer um deles contra alguma injustiça, podem acreditar que vou às últimas, às últimas mesmo.”
Eles são grandes porque a senhora é gigante …? (Dona Mercedes estampa cansaço com a pergunta-clichê e corta o tema)
( Pergunta sobre o que Boechat pensaria da dimensão nacional do velório em curso )
“Acho que ficaria assombrado com a quantidade de gente que demonstrou carinho por ele, pois não fazia as coisas aguardando recompensa. Fiquei de boca aberta com os depoimentos de pessoas de todas as classes sociais sobre o meu filho…
O que eu digo é que o caixão não era um caixão do Ricardo. Adorei a coisa do táxi em cima, porque isso era o Ricardo. Deixou de ser um caixão de luxo. (Referia-se ao bigorrilho luminoso colocado sobre o féretro fechado, homenagem da classe a seu radialista mais querido ) Agradeço à Band pelo caixão, pois vivemos num país, numa sociedade, em que o aparente é importantíssimo, mas aquela coisa de táxi foi maravilhosa. Eu falei, gente! Agora sim é o caixão do Ricardo.
Então é isso. Eu tenho muito orgulho do homem que foi meu filho — ser âncora ou não ser âncora é um aditivo, um adereço. Homem honesto, correto, sincero, que falava com faxineiro ou mendigo com o mesmo carinho que falaria com qualquer pessoa, um homem que, pelo que vi e algumas coisas que eu soube, fazia um tipo verdadeiro de caridade, sem demonstração. Ele tinha um coração de ouro com os animais, com os seres humanos… Às vezes dizemos ‘ai, coitado’, mas ninguém se coloca no ‘se fosse eu’… Eu acho que Ricardo se colocava neste ‘se fosse eu’, se condoía com o pai que tinha um filho moribundo… se condoía com os idosos que estavam maltratados… se condoía con as injustiças que são cometidas dia a dia …
Ainda hoje esteve aqui um casal que perdeu a filha naquela boate Kiss. É uma vergonha, uma vergonha que nossa Justiça não seja Justiça, que não se dê valor a la vida humana… que não se puna…, que tudo seja um jogo. O ser humano não pode ser um peão de um tabuleiro de xadrez… Um ser humano no se pode reponer. .. então este respeito a la vida , este respeito al ser humano, este respeito a que todos somos iguais, aqui não há raça superior a nenhuma…
Não vamos acabar com os problemas sociais se não mudarmos as cabeças e se não exigirmos, exigirmos desses todos que estão lá em cima, desses todos que querem mandar e que querem nos impor coisas, o respeito que o povo tem que ter e que merece ter, porque todos nascemos nesta terra, e se não nascemos, a adotamos e temos direito a este respeito. Eles têm obrigação de nos dar respeito, não caridade pública… respeito, hospitais que atendam com decência, colégios públicos que ensinem crianças a aprender realmente para poder crescer… trânsito ordenado, não só porque o meu carro é melhor que o teu eu vou passar na frente… Então, eu acho que temos muito a aprender, muito… e vocês me desculpem, eu já estou na reta final, vão passar dos siglos até que isto melhore…”
Mercedes Carrascal subira o tom. À dor pessoal incorporou o inconformismo diante da brutalidade social. Estava exaurida e não deve ter ouvido os aplausos incontidos que recebeu. Partiu dali para o luto privado mais abissal de uma vida.
Se ainda não viu, veja a entrevista dela: