Sandra Passarinho, 50emais
A pandemia da covid-19 trouxe à luz a questão do trabalho invisível realizado principalmente pelas mulheres. Trata-se das tarefas domésticas não-remuneradas. O nosso batente de cada dia: arrumar, passar, lavar, cozinhar, cuidar das crianças, de idosos, de parentes. Em números da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, Pnad Contínua, do IBGE, de 2019, são 82 milhões de pessoas consideradas “fora da força de trabalho”.
E se juntam a esse grupo outras 8,5 milhões de mulheres com filhos menores de 14 anos, que saíram do mercado de trabalho no segundo semestre do ano passado, por causa da pandemia.
É verdade que muitos homens já dividem as tarefas domesticas. Mas a Pnad Contínua mostra que elas é que continuam à frente dos trabalhos caseiros, no Brasil. Os números mais recentes, de 2019, indicam que 92,1% das mulheres fizeram trabalhos domésticos sem remuneração, naquele ano, enquanto a participação dos homens foi de 78,6%.
Ao todo, 146,7 milhões de pessoas se ocupavam com atividades domésticas em 2019, em sua própria casa, ou na casa de um parente. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios inclui os afazeres domésticos no grupo denominado “outros trabalhos”, ou seja, os que ainda não foram precificados, e, portanto, não fazem parte do PIB – o Produto Interno Bruto – soma de todos os bens e serviços finais produzidos pelo país.
“Os afazeres domésticos contam” – esse é o título de um estudo da economista e feminista Hildete Pereira de Melo, professora num curso de pós-graduação da Universidade Federal Fluminense, e pioneira defensora da inclusão no PIB das atividades domésticas não remuneradas.
Ela traduziu em números o valor simbólico dessa riqueza. Usou dados da Pnad, a partir de 2001, quando começou a ser feito o levantamento do tempo gasto na execução de tarefas domésticas. Além disso, rastreou a remuneração de serviços domésticos feitos por terceiros, empregados que não fazem parte da família.
Taxa de realização de afazeres domésticos, por sexo, em Grandes Regiões (%)
Fonte IBGE
O valor do trabalho de casa
A professora Hildete destaca que a compreensão do uso do tempo é essencial para se entender a desigualdade de gênero, porque revela as diferenças entre o papel social do homem e da mulher.
A professora fez as contas com o apoio dos economistas Claudio Considera, da Fundação Getúlio Vargas, que já foi diretor do Departamento de Contas Nacionais do IBGE e de Alberto di Sabbato, professor da Faculdade de Economia da UFF. Eles também assinam o estudo, que é de 2006. E Os três especialistas usaram como referência o pagamento aos empregados domésticos para avaliar o peso relativo dos afazeres não remunerados.
Os economistas fizeram o seguinte: multiplicaram a média dos serviços domésticos pagos por Estado da Federação e por hora de trabalho, pelo número de horas de afazeres domésticos, por Estado da Federação, sexo e faixa etária. E chegaram à conclusão que o trabalho doméstico gratuito representou em média o equivalente a 11,2% do PIB braseiro no período 2001-2005. Ou seja, de acordo com a professora Hildete, o Brasil teria um PIB mais alto se o trabalho doméstico gratuito fosse incluído nas contas nacionais.
O valor dos afazeres domésticos deu um salto ainda maior, de 2005, quando o total foi calculado em R$190,3 bilhões, para 2015, ano em que subiu para R$ 634,3 bilhões, a partir de dados do IBGE.
As contas nacionais medem todas as operações socialmente organizadas para a obtenção de bens e serviços, vendidos ou não no mercado, mas que utilizam recursos obtidos no mercado, como por exemplo o dinheiro para montar um negócio ou comprar equipamentos de trabalho.
Taxa de realização de afazeres domésticos, por sexo, segundo o nível de instrução (%)
Fonte IBGE
Revalorização da condição feminina
Os serviços domésticos feitos por empregadas remuneradas também entram nas contas nacionais, mas os mesmos serviços feitos pela dona de casa não entram. Por quê?
A professora Hildete Pereira de Melo acredita que essa falta de reconhecimento tem origem na discriminação histórica sofrida pelas mulheres, que só podiam cuidar dos afazeres de suas casas, em diversas sociedades. A desvalorização reforça o papel social de inferioridade atribuído à mulher, diz a professora.
Como os serviços da dona de casa não geram renda, tendem a ser ignorados pela teoria econômica, seja ela de esquerda ou direita, de economistas clássicos, ou marxistas, afirma Hildete. A economista explica que a teoria por si só é inadequada para explicar a condição feminina hoje em dia. “É necessário outro tipo de instrumental, que privilegie instituições, padrões culturais, estratégias de discriminação, questões psicossociais, para desvendar o real sentido do feminino em nossa sociedade”.
A partir de 1975, o ano internacional da mulher, escolhido pela Organização das Nações Unidas, vem crescendo o movimento de revalorização da condição feminina. A ONU Mulheres apoia o reconhecimento do peso econômico do trabalho doméstico não-remunerado. Na América Latina, grande celeiro de trabalhadores domésticos no mundo, dez países já medem o valor das atividades não-remuneradas no PIB.
A ideia é mostrar que o Brasil precisa saber o valor dessa atividade. A inserção no sistema de Contas Nacionais, e em consequência no PIB, simbolizaria um novo olhar sobre a situação das mulheres, diz a economista Hildete Pereira de Melo.
Visibilidade do trabalho feminino
O Produto Interno Bruto não mede o bem-estar da família resultante dos bons cuidados domésticos. Mas ajuda a compreender a economia do país e poderia abrir caminhos para a discussão de políticas públicas que reduzam a desigualdade de gênero no trabalho.
Brasil existe luz no fim do túnel para tirar da invisibilidade o “PIB da vassoura”, apelido dado pelo colunista Ancelmo Gois, do jornal O Globo. O nome formal do tema é “economia do cuidado” e está no projeto de lei 638/2019, proposta da deputada Luizianne Lins (PT-CE), que tramita na Câmara dos Deputados.
A iniciativa é para incluir o trabalho doméstico não-remunerado no cálculo do Produto Interno Bruto nacional. Se aprovada, o IBGE faria uma pesquisa sobre o uso do tempo de trabalho a cada cinco anos, no máximo, para inserir as informações nas contas que registram dados sobre a geração, a distribuição e o uso da renda no brasil.
Assim, o conceito de economia do cuidado passaria a constar nas análises dos ministérios da área econômica. Mas, no fundo, a principal questão é a busca por total visibilidade do trabalho feminino, usando o PIB nacional como plataforma.