Nesta bonita crônica, Elaine Tavares tece um longo elogio ao velho pai por quem, está claro, nutre o mais profundo amor. Ao mesmo tempo, é um protesto da autora contra a maneira que o mundo vê e trata as pessoas de mais idade. Sobretudo agora, com o surgimento do novo coronavírus, o preconceito contra idosos, sempre presente, tornou-se explícito, a ponto de se criar um nome para esse sentimento de hostilidade: velhofobia.
“No mundo do trabalho, do capital, ele é um inútil. Ele não pinta, não compõe, não se lembra do passado, não faz absolutamente nada que sirva para alguma coisa”, diz a autora, lembrando que ” “o pai foi um cara extraordinário ao longo de sua vida “produtiva”. Ele tem uma história linda de perseverança, de coragem, de derrotas e superações. Ele tem uma história, que está viva em nós. Por isso que hoje, quando ele (88 anos) aproveita – sem culpa – desse momento de inutilidade, eu me encho de ternura.”
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Hoje estava lavando roupa e o tanque fica bem num ângulo que dá pra ver o quarto do pai. Vi que ele conversava muito animado com uma fotografia que achou numa revista e que colocou na mesinha de suporte. Ela fica ali como num altar. É uma foto de um grupo de pessoas, num tempo passado, creio que deve ser lá pelos anos 1940. Não sei quem são, e nem ele, presumo. Mas, de qualquer forma ela o distrai e ele conversa amiúde com aquele povo. O papo é animado, ele mexe as mãos, ri, argumenta. É bem engraçado.
O pai passa os dias assim. Acorda, cochila, come bergamota, cochila, fuma, fica andando em volta da casa, vai até o portão e volta, pega os lixos da lixeira e traz para a cozinha, depois leva outra vez para a lixeira. Almoça, cochila, fica andando em volta da casa, prá e prá cá no portão, fuma, ouve música, come banana. Depois, janta, ouve música, come bergamota, toma chá, vê televisão e vai dormir. É uma vida não produtiva, que alguns chamariam inútil. No mundo do trabalho, do capital, ele é um inútil. Ele não pinta, não compõe, não se lembra do passado, não faz absolutamente nada que sirva para alguma coisa. Então, talvez por isso, que alguns governantes não se importem com a morte dos velhos agora na pandemia, afinal, são inúteis, não servem pra nada.
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Quando eu vejo o meu pai, aos 88 anos, na sua rotina diária de andanças pelo quintal, num ir e vir aparentemente sem sentido, não posso deixar de me comover. Sua inutilidade é um fato. Ele que sempre foi arrimo da família, agora não faz mais nada por ninguém. Passa o dia vivendo sem qualquer preocupação. Não seria então a inutilidade um presente? Um momento de viver para si, só na fruição? Penso que sim. Quem disse que é preciso produzir o tempo todo? Quem disse que há que se cumprir um protocolo de utilidade para ser uma pessoa?
O pai começou a trabalhar cedo, em escritório de contabilidade. Teve uma vida boa até os quarenta e poucos anos, quando perdeu tudo e teve de começar do zero. Um velho já para o mundo do trabalho. E, ainda assim, ele se reergueu. Estudou, se esforçou, e terminou sua jornada de trabalhador como chefe do almoxarifado do DEER de Minas Gerais. Nunca se queixou do trabalho duro e sempre foi em frente, sem reclamar. Como empregado era um calvinista. Nunca chegou atrasado, nunca faltou, deu sempre o seu máximo. Fazia o impossível pelos seus colegas. Como pagador de trabalhadores no trecho – obras nas estradas – ele se virava nos 30 para fazer chegar o dinheiro, fizesse chuva ou sol. Chegou a atravessar um rio, amarrado numa corda, para garantir o salário dos companheiros. Era o que se chama de “caxias”.
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O pai criou os filhos sempre ensinando o sentido da honestidade e do trabalho. Pagava as contas religiosamente. Era capaz de ter um troço se não tivesse dinheiro para quitar as dívidas e o sinal para a demência foi justamente esse: de repente ele se esqueceu de pagar as contas. Isso só poderia ser doença. E era.
O pai foi um cara extraordinário ao longo de sua vida “produtiva”. Ele tem uma história linda de perseverança, de coragem, de derrotas e superações. Ele tem uma história, que está viva em nós.
Por isso que hoje, quando ele aproveita – sem culpa – desse momento de inutilidade, eu me encho de ternura. É bom vê-lo sem a neurose das contas, sem a necessidade de cumprir afazeres, obrigações. Na sua vida inútil ele está livre. Ele pode conversar com os amigos imaginários nas fotos, ele pode degustar as frutas, dormir, caminhar, ouvir música sem preocupação. Ele tem quem lhe cuide, que lhe dê o alimento na hora, troque sua roupa, dê o banho, quem dance com ele, e lhe encha a cama de perfumes e cobertas quentinhas.
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Ele é uma vida que foi vivida na plenitude, mas sempre acorrentada ao trabalho, à obrigação, ao dever. Agora, não. É só um corpo dançante, que toma vinho e cospe o que não quer comer.
Por isso que a vida dele importa. Tanto quanto a do jovem que ainda não viveu tudo o que ele já percorreu. Por isso que não é possível escolher entre um e outro. Cada um é um universo. O jovem, ainda em jornada. O velho, que já cumpriu tanto.
A proposta do “deixa morrer os velhos e os fracos”, que aparece agora, com a pandemia, tem me consumido os dias e noites. Não posso aceitar. Porque, como Manuel de Barros, tenho respeito pelas coisas inúteis, que existem apenas para a fruição. Um velho dedal esquecido numa caixa, um quadro sem valor, um lápis de cor quebrado. Coisa que evocam belezas. O pai, esse homem de tanta vida, é assim. Um ser de fruição. Um evocador de belezas. Ele merece viver sem a pressão de ser útil.
Ele é velho, inútil agora, mas já riscou um caminho nesse mundão de deus. Sua vida importa. E muito. Assim como a vida de outros velhos e velhas desse planeta azul, cheios de histórias, memórias e belezuras.
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