Márcia Lage
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Caio, o menininho alegre, entrou na casa da bisavó desarrumando o consolidado. Refrescou o ambiente, espanou a poeira do tempo, rejuveneceu os velhos desgastados pelos anos nas costas.
A bisa o seguiu com os olhos até o quintal, onde ele explorou os quatro cantos com a rapidez e a inocência de quem mal saiu do útero. Era puro encantamento. Nos seus três anos de idade nunca tinha visto tantas flores, tantos pássaros, muito menos uma cachorrinha a latir e correr atrás dele.
Após avaliar detalhadamente o terreno e suas possibilidades, o menino pediu à mãe a coleção de carrinhos utilitários e ferramentas de brinquedo. Cavou a terra fofa e passou horas carregando as caçambas. Depois molhou tudo com um regador, cobriu com folhas dos pés de quiabo ( não corte os botões, Caio, falou uma das tias-avós) e só parou quando o chamaram para almoçar.
Estava tão imundo que teve de trocar de roupa, pés e mãos lavados ali mesmo, no tanque, aos gritos de prazer pelo contato com a água fria. Sentou-se na cabeceira da mesa, do lado oposto da bisavó, que ocupava a outra ponta. A bisa o olhou como se desabrochasse. Entre ela e o menino o tempo tecera quase um século. Mas Caio não se apercebia disso, das diferenças de idade entre ele e os adultos.
Estava tão excitado com o montão de gente à sua volta que não conseguia comer. O pai quis ajudá-lo com a colher e ele empurrou o braço dele, cantando: “Hoje eu vou tomar um porre, não me socorre que eu tô feliz, feliz, feliz”.
Foi uma risada geral. Que música era aquela? Onde aprendera? O pai explicou que era um samba enredo muito antigo que ele havia cantado para o menino uma única vez.
Naquele momento família em que quatro gerações se encontravam sob o teto da mais próxima definição de lar que se pode ter, a criança havia entendido perfeitamente o sentido do samba enredo. Externou seus sentimentos. Estava tomando um porre de felicidade com as doses generosas de carinho, atenção e cuidados que recebia. Retribuia os afetos com um regozijo que contagiou os adultos, alguns já desaprendidos de gargalhar.
Os tios-avós viraram criança levando o menino para brincar em tudo quanto era parque e máquinas paradas em ruas (o garoto é louco por tratores, empilhadeiras, roçadeiras e cortadores de grama, entre outras coisas do gênero). A bisa, que há muito não faz mais nada, levantou cedo no dia seguinte e lavou os brinquedos abandonados no quintal no dia anterior. Levou bronca do bisneto: “Não era pra lavar, eu vou brincar mais!”
Desconcertada, a bisa ouviu da neta, mãe do menino, que quando ela era criança também não gostava de ter seus brinquedos recolhidos daquele quintal mágico. Interpretava como um sinal de que as férias haviam terminado e ela teria que voltar para um apartamento, perder os mimos e as comidinhas gostosa da vovó.
A bisa se enterneceu: “Oh, Caio, lavei seus carrinhos pra você encher de novo com terra, vai embora não, vou ficar com muita saudade de você”.
Mas Caio teve que ir. O beijo que ele deu na bisa ao se despedir revelou o prazer da convivência entre a criança e a idosa. Mostrou também a alegria que esses momentos proporcionam e a necessidade de asilos e abrigos repensarem a forma como acolhem uns e outros.
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