Maya Santana, 50emais
Apesar do número cada vez maior de mulheres que mantêm relações amorosas com outras mulheres, ainda há um forte preconceito cercando o assunto. É um tabu. Mesmo assim, muitas mulheres, ignorando as pressões da sociedade, se lançam em relacionamentos homossexuais. Como mostra esta reportagem de Constança Tatsch para O Globo, são mulheres de mais de 50 anos, que foram casadas – às vezes até mais de uma vez -, ou tiveram namorados e nunca se imaginaram gays.
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Elas foram casadas e tiveram namorados. Nunca sentiram desejo por outras mulheres, mas agora, mais velhas, descobrem uma nova forma de amar. E talvez até melhor. São mulheres maduras que se realizam em relações homossexuais.
A antropóloga Mirian Goldenberg pesquisa casais e, há cerca de dez anos, começou a perceber uma reclamação constante entre as mulheres com quem conversava:
— A intimidade passou a ser uma necessidade feminina não atendida nos seus relacionamentos com maridos e namorados. Elas relatam uma dificuldade associada à entrega na conversa, na escuta, na atenção, no tempo. Os homens nem entendem, porque acham que estão conversando, mas elas dizem “eu quero uma escuta atenciosa, não uma solução”. É como se essa intimidade mais profunda, que tem a ver com uma entrega emocional, fosse quase impossível nos relacionamentos com os homens.
Foi nessa época que começou a perceber os primeiros casos de mulheres que diziam encontrar justamente isso com amigas, que acabam virando parceiras .
— Elas se vêem como heterossexuais, nunca tinham tido relações homossexuais. Não era uma coisa reprimida. Se surpreenderam porque a amizade com muita intimidade acabou levando a uma relação diferente. O sexo veio como consequência. São mulheres que encontraram na maturidade a intimidade que tanto desejavam, mas com mulheres — diz Mirian.
Foi o que aconteceu com Marcele (nome fictício*). Ela teve dois casamentos longos, alguns namorados e agora, aos 52 anos, está casada com uma mulher.
— Os relacionamentos que eu tive nunca tiveram a profundidade que eu tenho com a minha companheira. Tive muitos namorados, dois casamentos, mas eu nunca vi nada igual, nunca vivi um amor como eu vivo com ela. É muito diferente, desde o comprometimento no dia a dia ao entendimento, pensar no futuro, compartilhar as coisas, contar tudo. Existe uma cumplicidade maior, uma lealdade maior também. Com homens, sempre havia certa desconfiança, ficava com o freio de mão puxado — conta Marcele, que também partilha com a mulher outras pequenas alegrias. — Tem muito companheirismo, trocamos as roupas, vamos ao shopping, pintamos o cabelo juntas. É como ter a melhor amiga e ainda fazer amor com ela bem gostoso.
Ela prefere evitar rótulos.
— Não é que eu virei homossexual, não é isso, eu sou uma mulher que se apaixonou por outra mulher. Foi a experiência mais linda da minha vida, nunca fui tão feliz. Não acho que fui sempre homossexual nem heterossexual, eu apenas encontrei um amor.
Talvez, se não tivesse encontrado sua parceira, pudesse estar em alguma relação heterossexual.
— Mas com certeza não estaria tão feliz — afirma.
A antropóloga não coloca a culpa nos homens. Segundo ela, há sim, homens mais abertos que conseguem suprir essa necessidade feminina de intimidade. Mas a grande maioria teria mais dificuldade em falar de questões subjetivas, emoções, fragilidades, medos e desejos, principalmente porque foram, e continuam sendo, ” educados para reprimir as emoções “, o que torna mais difícil se abrir e se tornar íntimo.
Em relação à atração sexual, para Mirian Goldenberg, o desejo é socialmente construído.
— Quantas mulheres que eu pesquiso com mais de 60 anos, que tiveram a vida inteira relações com homens, dizem “Não quero mais! Agora meu desejo está em outro lugar”, não necessariamente mulher, mas viver em liberdade, viajar com as amigas. Como existe maior discussão, maior informação e maior liberdade, elas descobrem diferentes desejos ao longo da vida.
Casal perfeito?
Por isso, com a maior aceitação das relações homossexuais de hoje em dia, essas mulheres também podem estar se abrindo para algo que há algumas décadas era impensável.
— O espírito da época, mais livre, pode estar libertando as pessoas para viver mais. Abriu essa possibilidade. Hoje, vemos mulheres se relacionando com mulheres toda hora e isso acaba tornando a escolha mais possível — afirma a antropóloga.
Com a mãe criada em um convento, a educação de Cecília (nome fictício*), 55 anos, foi muito tradicional. Aprendeu a costurar e cozinhar para agradar marido, permaneceu virgem, aos 20 anos já estava casada e pouco depois teve duas filhas. Os anos passaram e as afinidades se perderam.
— Éramos o casalzinho perfeito da turma, filhas bonitinhas, todo mundo na faculdade, escola boa, casa arrumadinha, eu cozinhava bem, tudo se encaixava, menos eu. Queria ir para a vida, viajar, ver filmes, aprender, e ele queria coisas diferentes dos meus sonhos. Depois de mais de 20 anos de casamento, acabei me separando.
Ela teve que refazer seu círculo de amizades. Fez uma turma de amigos na academia, com quem viajava para participar de corridas. Aos poucos, uma das amigas começou a demonstrar interesse além da amizade.
— Antes do meu primeiro relacionamento com mulher, que é a que estou hoje, eu nunca tinha sentido desejo por mulher. Quando as coisas começaram a acontecer, eu lidei super bem, simplesmente vi uma pessoa que me atraía, me encantava e não me questionei. Mas depois, logo no comecinho, eu até achei que tivesse um problema. Decidi procurar um terapeuta. Aí pensei: que idiotice! quem vai a um terapeuta para perguntar por que está feliz? Resolvi simplesmente viver. Eu seria uma ex-hétero ? Uma nova gay ? Eu não sei, não tenho essa definição. Sempre penso quando se fala em relacionamento, num relacionamento entre duas pessoas, o gênero não vem ao caso.
Segundo Cecília, uma das vantagens na relação com outra mulher é não ter papéis definidos (ou “obrigações”), sexualmente, economicamente ou na casa. Ela também celebra a maturidade para assumir suas escolhas.
— Acho que o que me deu segurança, fora a paixão, foi a idade. A essa altura da vida você se preocupa bem menos com a opinião do outro, as duas únicas pessoas que me preocuparam foram as minhas filhas — afirma. As duas moças apoiam a mãe plenamente.
Cecília divide a própria vida entre o primeiro casamento e o segundo, atual. Foi feliz no primeiro, dentro do que havia escolhido para si mesma.
— Hoje, eu estou muito, muito bem, deu tudo certo, a gente se completa e se diverte. O que eu encontrei nesse relacionamento é o que todos procuram, héteros ou gays: companheirismo, sonhar os mesmos sonhos, alguém que te respeite e queira as mesmas coisas da vida. O amor aconteceu. Fui feliz num determinado tempo, com uma determinada vida, e, hoje, estou também feliz com a minha escolha de agora.
* Os nomes foram alterados a pedido das personagens