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Quando li este artigo escrito por Mauro Ventura para a Revista O Globo, eu me identifiquei imediatamente com a psicanalista e escritora Betty Milan. Morei muitos anos no exterior. Retornei ao Brasil quando a minha mãe estava com 81 anos. Fui morar na casa dela e, nos anos seguintes, até que se despediu da vida, eu realmente me tornei a mãe da minha mãe. Era um privilégio estar com ela e usufruir de sua imensa sabedoria. Ao mesmo tempo, perturbava ver sua energia se escoando com o passar do tempo. Em seu livro A Mãe Eterna, a psicanalista fala exatamente dessa profunda mudança na relação entre mãe-filha/filha-mãe.
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Há três anos, a psicanalista e escritora Betty Milan lançou um livro autobiográfico, “Carta ao filho”. Ali, abordava de maneira franca com o cineasta Mathias Mangin temas como o triângulo amoroso que manteve e o aborto que fez. Agora é a vez de “A mãe eterna” (Editora Record), em que a narradora trata da convivência com a mãe de 98 anos. Apesar de ser um romance, a inspiração é a própria relação de Betty com dona Rosa, que fará 99 anos em dezembro. Segundo a atriz Fernanda Torres, o livro é “um relato espantoso pela delicadeza e também pela franqueza com a qual a autora narra a passagem de filha para mãe da mãe”. Aqui Betty também toca em temas polêmicos, como suicídio assistido. Dona Rosa não leu o livro porque não consegue mais ler. “Mas, após o lançamento (quinta, 19h, na Travessa do Leblon), eu e as cuidadoras vamos ler fragmentos para ela. Mamãe gostou de saber que agora há um livro inspirado na nossa relação que se chama ‘A mãe eterna’”, diz essa paulistana de 71 anos, que fundou em 1975 o Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, junto com o psicanalista MD Magno, e que fez análise com Jacques Lacan, de quem se tornou tradutora, assistente e uma das pioneiras na divulgação de sua obra no Brasil.
Revista O Globo: Por que escrever para o filho e agora para a mãe?
Betty Milan: Para me desapegar. No caso do filho, para aceitar a separação. Ou seja, liberá-lo e me separar da posição em que ficava como mãe, querendo controlar sua vida e não deixando que corresse os riscos que precisava correr para trilhar um caminho próprio. Talvez por ter um filho único, temia excessivamente a perda. No caso da mãe, escrevi para suportar a devastação física e a falta de comunicação e para elaborar a perda antes mesmo da sua morte. Quando você se separa do filho, fica tão só quanto quando perde a mãe. São as ligações mais viscerais. Nos dois casos tive que superar o meu egoísmo. Não é fácil, mas é possível. Eu e meu filho somos bons parceiros, e foi também graças ao filme que ele fez, “Dona Rosa”, premiado pelo MIS, que eu me debrucei sobre minha história com minha mãe.
Revista – O que você mostra nos dois livros?
BM – Que não existe mãe modelo nem modelo de mãe a ser seguido. É uma função que precisa ser aprendida diariamente, segundo as características e personalidades de cada um. Nenhum filho é igual a outro e nenhuma mãe é igual a outra. Cada pessoa é um ser único. A pior coisa é dizer: na minha idade não posso mais fazer isso, tenho que ser assim. Deve-se fugir da armadilha de que por causa da idade cronológica temos que nos comportar de determinada maneira. É uma imagem antiga a de que a cada idade corresponde um padrão. Há que levar em conta questões como genética e estado de espírito.
Revista – Você toca no tema tabu do suicídio assistido em “Mãe eterna”.
BM – Há duas posições na Medicina. Uma é a obsessão terapêutica de querer vencer a morte a todo custo. Nesse movimento de prolongamento indefinido da vida, há um grande sadismo. Também sou médica, vi doentes terminais, como meu marido, e sei o quão penosa a morte natural pode ser. A outra posição é discutida no livro: por que não assistir pessoas que desejam morrer depois que a vida se tornou um tormento, mas que não têm condições de fazer isso sozinhas?
Revista – Como é conviver com a mãe nessa fase de velhice extrema?
BM – É muito duro esse momento da vida em que sua mãe tem sérias limitações. Qualquer um na condição de mãe da mãe sofre, como diz a narradora no livro: “Me sinto tão encarcerada pela missão atual quanto você pela sua idade. Somos reféns do tempo, as duas”. Ela é ambivalente, quer e não quer a morte da mãe, assim como a própria mãe quer e não quer morrer. Tem hora em que a narradora escreve frases como: “De repente, a melhor das mães não pode mais nada” e “Não suporto a imagem de sua decrepitude”. Mas tem hora que diz: “Apesar dos seus 98 anos, não suporto te perder”. As pessoas não toleram conviver com os velhos porque não suportam a imagem da decadência. Mas quem se dispuser a aprender com o velho vai se tornar mais humano e se aproximar mais de si mesmo. Aprendi com minha mãe o quanto a velhice pode ensinar se estivermos dispostos a escutar. A gente se surpreende com o que o velho tem a dizer. Ele tem uma experiência que não temos. Se por um lado a vista e a audição estão falhando, por outro ele vê e escuta com o coração.