
Márcia Lage
50emais
Divina Pastora. Esse nome lindo dá fama internacional a um município de pouco mais de quatro mil habitantes no interior de Sergipe. Ele guarda uma relíquia trazida ao Brasil por freiras europeias, no século XVII: a renda irlandesa.
Trabalho manual dos conventos e clausuras, a dificil e paciente arte de tecer essa renda sobreviveu apenas em Sergipe, sendo Patrimônio Cultural Imaterial do Estado e Patrimônio Cultural Nacional do IPHAN desde 2009.
Pode-se dizer que todas as mulheres de Divina Pastora dedicam-se a esse artesanato, revendido ao mundo por meio de duas cooperativas locais. É a maior fonte de recursos do município.
No mês de abril, enquanto uma delegação estava em Paris participando de um evento para divulgação do produto, outra expunha o trabalho das rendas na Feira da Páscoa, que ocupou uma parte da orla de Aracaju durante todo o mês.
A expositora Adriane Oliveira, de 31 anos, conta que o bordado quase foi à extinção nos anos 1990, porque ele é feito dentro de um traçado de lacê, um fio de seda de espessura similar a dos barbantes.

Havia, no Brasil, uma única fábrica que produzia os cordões coloridos, a YPU, de Nova Friburgo (RJ) fechada em 1985. O lacê desapareceu do mercado nacional. Importá-lo inviabilizaria a produção da renda.
As rendeiras pediram socorro ao IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), que pediu socorro ao Senai (Serviço Nacional da Indústria). Juntas, as duas instituições estudaram as máquinas da antiga fábrica e construíram outras, mais modernas, que foram doadas às cooperativas das bordadeiras nos municípios sergipanos que produzem o artesanato: Divina Pastora, Maruim, Laranjeiras e Nossa Senhora do Perpétuo Socorro.
Atualmente, o lacê é produzido nessas cooperativas, que fizeram voar a imaginação das artesãs, com novas cores, novas espessuras e texturas, podendo ser usado em obras contemporâneas como bijuterias e bolsas, além das tradicionais toalhas de mesa e peças para arremates de roupas íntimas, véus de noiva e vestidos finos.
Na tenda da Feira da Páscoa chamavam a atenção as carteiras de festa bordadas sobre cetim; os colares de cores fortes que enobrecem qualquer vestido; e os brincos enormes, para pescoços de mulheres ousadas e elegantes.
Os preços não são baratos, mas quem assistir às artesãs fazendo aquele trabalho, desfiando pacientemente o tecido em diversos formatos dentro do desenho traçado pelo lacê, num trabalho que leva dias, meses e até anos, não vai regatear.

Afinal, o que elas vendem é mais que um artesanato tombado pelo Patrimônio Histórico: é uma memória de um passado colonial, um pedaço do tempo em que as mulheres teciam delicadezas, na esperança de um dia serem livres para escolher bordar ou não bordar.
As mulheres de Sergipe escolheram bordar. E vivem de renda. Literalmente. Sustentam suas casas e seus municípios e devolvem à Europa, com muito orgulho, a arte centenária que veio de lá e, por lá, já foi perdida.
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