Márcia Lage
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De médico, poeta e louco, todo mundo tem um pouco, diz o velho ditado.
Tenho quase nada de médico, mas como essa profissão desperta sentimentos humanitários fundamentais para nosso aprimoramento, venho sendo obrigada a exercê-la, muito a contragosto.
Enfrento filas e escadas diariamente, rompendo os longos corredores do hospital público, sem olhar para os lados.
A saliva fervendo na boca, o estômago em dança circular.
A ala onde se encontra minha paciente está enfeitada de bandeirinhas, no esforço de alegria e normalidade que funcionários zelosos querem imprimir à doença.
Entro. Das cinco mulheres ali internadas só a que eu visito parece assustada.
As demais ou dormem ou brincam entre si, como se estivessem numa pracinha, de olho em tudo a sua volta.
Não têm perspectiva de alta e se adaptam ao ambiente com uma naturalidade de causar piedade. Seria isso uma forma de loucura?
Especulam curiosamente as causas que levaram cada uma delas àquele espaço coletivo de dor e entrega.
Minha paciente não era para estar ali. Criou o.motivo, perdida nos descaminhos de uma vida de abandono, solidão, pobreza e, por fim, decrepitude.
Não tem pressa de voltar para casa. Cansou de mentir para si mesma que a felicidade existe e pode ser escalada até o quarto andar de um apartamento rodeado de avenidas, sonorizado por buzinas e perfumado de óleo diesel.
Desistiu de limpar a fuligem que vem da rua e se resignou a não ter perspectiva além do aglomerado de telhados e de espigões que avista da janela.
O hospital se transforma pouco a pouco num refúgio seguro, onde as idosas fazem morada, trocando serviços e atenções, sendo vistas, ouvidas e tocadas por um batalhão de jovens profissionais, carinhosos, bonitos, sadios.
Verdadeiros colírios para os olhos cansados de não ver beleza.
Por mais que eu tente, não sinto conforto nenhum naquele ambiente que me esfrega na cara o lado ruim da vida.
E mesmo que o hospital fosse privado, construído por arquitetos humanistas sobre um bosque verdejante, não seria um lugar aonde eu quisesse ir.
Afogada pela realidade da finitude e suas perversidades, arranco para fora do hospital minha boa saúde, protegendo-a das bactérias e dos vírus com o álcool abundante, espalhado por toda parte.
Junto ao prédio do hospital, um ipê rosa derrama flores na calçada, amenizando a feiúra que me encara a cada visita. Respiro nele a poesia que falta.
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