Márcia Lage
50emais
Andava com a morte enganchada nos ombros desde os 50 anos, quando tirou um câncer que teimava em rebrotar de tempos em tempos. Como se tivesse feito uma poda, não uma cirurgia.
Por volta dos 60 continuava viva e linda, com uma urgência desesperada de ser feliz. Tinha tudo que muita gente nunca vai ter: beleza, dinheiro, cultura, filhos bacanas e netos fofinhos, ainda bebês.
Faltava um namorado. Nisso, não havia tido muita sorte. Dois casamentos desfeitos, muita decepção amorosa. Não o suficiente para apagar o tesão e a vontade de amar e ser amada. Acreditava no milagre, na cura pelo afeto.
Também tinha desejo de mar e cachoeira, gente despreocupada, arte, música, ar puro, natureza. Encontrou tudo isso num enclave entre o Rio de Janeiro e São Paulo, onde passava os dias nas praias e as noites nos eventos culturais da pequena cidade, intactamente preservada.
Se aquele milagre existia, o amor também existia. E ela o reconheceria quando o encontrasse. Demorou uns dias, mas aconteceu. Não era bem o que esperava, mas a vida exigia coragem.
Encarou o rapaz, alguns anos mais novo que ela, muito mais alto, infinitamente mais gordo. Gente boa, isso que era importante. O fosso cultural entre eles tinha o tamanho das desigualdades nacionais. Mesmo assim ela foi em frente, alegre com o benefício final de sua condenação à morte.
No mesmo dia do encontro instalou-se no muquifo do cara. Comprou lençóis, louças e calcinhas novas, fez uma faxina na casa e tatuou na boca um sorriso de fêmea empoderada. Como se tivesse conquistado o último espécime macho da extinta raça humana.
Tratou de aproveitar. Sexo e risos regados a cerveja e caipirinha. Tudo muito bom até o Réveillon. Ela queria dançar. Ele era desengonçado, mais duro que o próprio bolso. Ficou constrangido.
Disparou a beber enquanto ela se extasiava junto de novos amigos, livre demais para se deixar intimidar. O namorado aguentou até o foguetório da virada. Depois avançou sobre ela, puxou-a pelos cabelos e vociferou: vamos embora. Agora!
Ela foi? Só no dia primeiro, de tarde, para buscar suas coisas e terminar o romance. Mas quando o câncer retornava ela voltava à cidade e reatava o namoro, buscando naquele relacionamento todo o prazer que pudesse mantê-la viva por mais um tempo.
Ganhou mais sete anos nesse jogo com a morte, que no mês passado lhe deu cheque-mate. Fizemos uma festa para homenageá-la e avisamos o antigo namorado que, de agora em diante, a ausência dela será definitiva.
Ele se surpreendeu chorando, coisa da qual nem se lembrava mais. Depois pegou umas flores, remou no rastro do pôr do sol e despejou no mar sua angustiante saudade.
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