Miriam Moura
50emais
O conceito de “memória involuntária” ficou imortalizado pelo escritor francês Marcel Proust em sua obra clássica “Em busca do tempo perdido”, uma das mais importantes do século XX. No romance, as memórias dos personagens são despertadas por sensações fortuitas a partir de um cheiro, um gosto, um objeto. Com o simples gesto de molhar a madeleine, o mais famoso bolinho da literatura, o narrador proustiano era transportado para sua infância em Combray, na França.
Cerca de um século depois, a valorização das coisas do cotidiano volta como marca de comportamento, aponta o hub de tendências WGSN (Worth Global Style Network), com sede em Londres, Nova York, Honk Kong e São Paulo. O novo movimento é conhecido como The Gleamers (Os esperançosos, em tradução livre). A trend é relacionada a pessoas que priorizam o bem-estar coletivo e encontram prazer em pequenas vitórias e em momentos considerados banais.
Proust tem muitos seguidores, como a escritora, crítica de arte e colunista do Financial Times Enuma Okoro, que descobri na pandemia e me tornei seguidora assídua de seus textos refinados e extremamente sensíveis. Enuma é nigeriana-americana, autora de diversos livros. Em uma de suas colunas no FT, de alcance global, ela celebra as “minúcias da vida”. Enuma diz que “acompanhar pequenos eventos dignos de comemoração nos ajudaria a sentir mais alegria e gratidão”.
Na mesma onda de comportamento de valorização do prazer de desfrutar e valorizar momentos simples está a economia da aura, que engloba um interesse crescente por tudo que é intangível, seja pela ascensão do bem-estar espiritual, do retorno a práticas de ciências alternativas ou a busca por experiências multissensoriais que despertem admiração e encanto, aponta a WGSN. Nessa mesma vibe temos a auramaxxing, tendência que engloba práticas como a terapia reiki, massagens cerebrais e restauração de aura. Podemos criar uma identidade sensorial.
Muito mais do que simples modismos, tendências são mudanças graduais nos valores culturais e sinalizam maneiras como as pessoas escolherão viver no futuro. Especialistas em comportamento avaliam ser natural que as pessoas busquem bem-estar depois de uma crise traumática como a da Covid-19 e de tempos de dificuldades econômicas, nos quais sonhos da vida adulta como o da casa própria, carro ou acumular reserva financeira estão ficando distantes.
O termo “gleamer” vem de “glimmer” que representa sentimento, em inglês, um pequeno momento de alegria, segurança e conexão. Em português são as “microalegrias”, que funcionam como antídoto para um mundo cruel, afirmou ao Globo a especialista em tendência da WGSN Mariana Santiloni.
Pesquisas apontam que a maioria das gerações Z e Millennials se identificam como compradores emocionais, se conectam melhor a produtos e experiências que evocam emoções, memórias e sensações específicas. Tudo isso potencializa a tendência de se procurar estímulos e gatilhos para pequenas recompensas e momentos de bem-estar.
Este sentimento que define o tempo atual parece sugerir uma certa rebeldia em buscarmos liberdade para reconhecer e celebrar aspectos de nossas vidas regulares. Enuma festeja os jardins, que podem servir como metáforas de nossas vidas: o que plantamos neles, o que arrancamos. A colunista do FT acredita que as histórias estão em toda parte, até mesmo as árvores, os rios e os animais as contêm. Lembro também o poder energizante de alvoradas e de poentes.
A coluna de hoje é um convite para prestarmos atenção a momentos que podem trazer novos sentidos e coloridos para nossas vidas.
Linkedin: LinkedIn.com/miriam-moura-025b5176
Leia também de Miriam Moura
Viajar é criar momentos de vida
Experimentar arte eleva nosso espírito
: