Márcia Lage
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Até eu me assustei com a noticia: morre a carnavalesca Márcia Lage, 64 anos, no Rio de Janeiro. Vi logo que não era eu, porque não sou carnavalesca, não moro no Rio nem tenho mais 64 anos.
Para os desacostumados a fazer apuração (uma modalidade do jornalismo já um pouco em desuso, que nos obrigava a só noticiar um fato depois de ampla checagem da notícia com todas as fontes) o susto foi grande.
Estava numa área sem internet, num processo de detox digital que vai durar até o dia primeiro de fevereiro. Os amigos, aflitos, passavam mensagens para saber se eu estava viva. O símbolo solitário da não-visualização os deixava apavorados. Era eu?
Uma mensagem dizia: quase infartei! E anexava a notícia da grande perda para a escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel.
Outra contava que, quando viu a manchete no telejornal da manhã, começou a tremer como se estivesse no Alaska. Só se acalmou quando viu a imagem da carnavalesca, bem diferente da minha.
Essa homônima, que não é minha parente – o Lage vem do marido, Ricardo Lage, que também desconheço -, sempre se interpôs a mim nas pesquisas de internet.
Muito mais famosa e com um trabalho maravilhoso em muitas escolas de samba – Portela, Mangueira, Império Serrano, Grande Rio e Padre Miguel – aparecia com seus feitos. E eu, nada.
Tinha que digitar meu sobrenome do meio, Duarte, para encontrar um ou outro registro sobre mim.
Como assino apenas Márcia Lage, nas pesquisas, era ela que vinha, com seus feitos gloriosos, que passam ao largo do que faço: simplesmente, escrever.
Márcia Lage sambava. Eu mal ensaio um forró. Márcia Lage costurava. Eu mal alinhavo uns textos. Márcia Lage desenhava as mais belas fantasias para os samba-enredo de suas escolas. Eu mal desenho florzinhas no canto dos cadernos de anotações para despistar minha falta de talento para as artes visuais.
Ela era um sucesso. Eu não sou propriamente um fracasso, mas estou a anos-luz da fama.
Lamento muito que minha xará tenha ido tão cedo, assustando meus amigos e os amigos dela, minha família e a família dela, toda a Escola de Samba da Padre Miguel, que deve tê-la homenageado com repiques da bateria e muito samba no pé, exatamente como ela merecia.
Não pude ver nada disso, por causa do tal Detox Digital. Mas não deixo de pensar que, a partir de agora, morrerei toda vez que alguém pesquisar meu nome nas redes sociais, já que os feitos dela foram e serão para sempre espetaculares, enquanto eu permaneço viva e no anonimato, sem nem tentar brilhar nos algoritmos do sucesso.
A mim resta fazer o que sempre deveria ter feito, quando descobri o homônimo: mudar minha assinatura para Márcia Duarte (será que há muitas com esse sobrenome?) e deixar morrer com a carnavalesca esse sobrenome.
Que Deus a tenha e que meu novo batismo me faça melhor do que consegui ser até agora.
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