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Márcia Lage
50emais
Uma pessoa, quando se assenta definitivamente na velhice, tem duas atitudes a tomar: cuidar da saúde e vigiar a alegria. Ambas tendem a escapar com o passar dos janeiros.
Pensando nisso, mudei-me para a borda do mar, pra ser batizada diariamente com suas águas de iodo e sal. Não satisfeita, resolvi me consagrar à Ayahuasca, na esperança de curar qualquer ziquizira que queira se instalar daqui para a frente.
Rapaz! Pensa numa experiência irreprizável. A pajé que nos recebeu na aldeia explicou que tudo poderia acontecer. Ou nada. O tudo seriam vômitos e diarréia após a beberagem do chá; e o nada, nenhuma conexão com a tradição indígena e seus poderes medicinais.
A cerimônia tem início às 22h30m e só termina com o raiar do sol, no dia seguinte. Começa com “um rezo” dos pajés na língua da etnia que conduz a cerimônia, muita cantoria e defumação do ambiente. Três doses do chá para cada um e cafungada no rapé feito com folhas de fumo e de ervas sagradas, trituradas até virar pó fino como talco.
Muita gente arriou na primeira talagada da beberagem, um líquido marrom espesso, com cheiro ácido e terroso.
Engoli minha dose no gute-gute e fui para o meu colchonete, onde o espírito do sono me pegou.
Dormí imediatamente e acordei com o refrão de uma música maravilhosa, que despertou até a chuva.
A água escorria do céu feito cordões de luz. Olhei à volta. A palmeira iluminada fosferecia em azul, o pé de caju brilhava em verde, a cobertura da oca refletia mil cores.
As duas fogueiras, que jogavam para o alto faíscas vermelhas, não se apagaram.
Uma sensação de plenitude, de integração total com o universo se apossou de mim.
Na hora da segunda dose, eu estava cheia de alegria. Não dormí. Entrei na roda da dança e, quando me cansei, sai ao relento.
Não havia nem sinal de nuvens no céu. Estrelas brilhavam intensamente e algumas pessoas aguardavam uma chuva de meteoritos que não rolou.
A lua crescente gibosa reapareceu. Até a terceira dose, pelas duas horas da manhã, eu não havia passado mal.
Continuei cantando e dançando junto aos bravos que não sucumbiram. Os demais, ou dormiam enrolados ou saíam para ir ao banheiro ou para chorar sob as sombras das árvores.
Chegou a hora do rapé. A pajé soprou o pó na minha narina direita e foi como um jato de pimenta malagueta.
Perguntei se podia dispensar a experiência na narina esquerda e ela respondeu que não.
Soprou de novo o pó e foi como levar um coice. Comecei a tossir e a querer vomitar, minando pela boca uma gosma nojenta.
Trôpega feito bêbada, fui levada para o colchonete e lá fiquei respirando pela boca, gosmando e vomitando.
O teto da oca, que era de telha, ficou de palha e brilhava em mil cores, dançando ao ritmo da música.
O corpo começou a tremer por dentro. Uma sede avassaladora secou minha boca, mas eu não tinha força para pegar a garrafinha de água ao meu lado.
Invoquei o dia desesperadamente, para que aquela sensação horrível passasse. Mas a noite ainda dormia na escuridão.
Nova tempestade desabou. Comecei a bocejar ininterruptamente e descansei meio anestesiada.
De vez em quando via pessoas dançando ao meu redor e ouvia cochichos. Abria os olhos e todos dormiam à minha volta.
Finalmente, o galo cantou. Consultei as horas. Ainda faltava um bom tempo para amanhecer de vez.
Tomei água. Melhorei. Os tambores aceleraram os cantos e as danças até o céu se colorir de vermelho e as sombras do ritual ganharem contornos nítidos.
Os pajés fizeram novo “rezo” e pediram aos consagrados relatos da experiência.
Eis meu relato: tiquei a experiência. Se algo mudou nas minhas células e na minha obscura visão do mundo, gratidão.
Não tenho mais idade para drogas (ainda que sagradas como a ayahuasca) e nem energia para passar a noite numa rave indígena.
Voltei para o conforto da minha cama e dormi o resto do dia. Fiquei bem. Espero que essa sensação dure para sempre.
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