Marlene Damico Lamarco
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Uma amiga filósofa sempre diz que o defeito não existe, o que existe é d’efeito. Ela certamente nos lê e sou testemunha de muitas criações que fez em cima de coisas acidentadas. Adorei a metáfora pois, desde criança, conserto e reformo achados e perdidos, e adoro andar pelos campos catando coisas que muitos chamariam de lixo. Pedaços de árvores quebrados e apodrecidos são os meus favoritos, pois a meu ver, são verdadeiras obras de arte esculpidas pela chuva, pelo vento, pelo tempo.
Desenvolvi um talento especial para reformas de roupas, de móveis, de enfeites e de procurar novos usos para coisas velhas. Muitas vezes por necessidade, outras por respeito pelas coisas que podem ser reaproveitadas, e em todas elas, por criatividade e paixão.
Acho que acontece o mesmo com os relacionamentos rompidos, daqueles que os especialistas de plantão rotulam como sendo um cristal que, uma vez quebrado, nunca mais será o mesmo. Não será mesmo, e em alguns casos, poderá ser ainda melhor, pois se sobreviveu, é verdadeiro. Foi melhorado exatamente por ter-se quebrado.
Os japoneses quando colam um objeto quebrado, eles preenchem as rachaduras com ouro. Eles acreditam que quando algo sofre algum dano, tem uma história, vale a pena repará-lo. De fato, ao consertá-lo, ele se torna um objeto único e especial. E passa a valer mais do que antes.
Tenho a mesma ideia no que se refere ao resgate de gente. Já trabalhei com pessoas deprimidas, abandonadas, moradores de rua, com toda sorte de vícios e tristezas. Foi quando mais aprendi sobre recuperação e salvamento, foi quando mais aprendi que gente tem valor sempre e que vale a pena tentar consertar… e o mais importante, sempre tem conserto!
É a voz de Deus, dentro de nós, que nos convida a não desistir, a começar de novo, a buscar a transformação ou a aceitação daquilo que foge ao nosso entendimento. Somente quando ouvimos Esta voz é que fortalecemos a generosidade e passamos a entender de esperança.
O sofrimento de determinadas perdas tem o poder de “ralar” o nosso ego e nos sensibilizar, como o seixo que rolando no rio vai aparando os cantos grosseiros e ficando cada vez mais delicado. Perdas fazem verdadeiras revoluções na vida da gente e nos convidam a rever posições, a capitular diante de questões de orgulho, de empáfia, de racionalidade. Com o sofrimento, descobrimos novas formas de interpretação e de valorização da vida e das pessoas.
Já perdi a festa organizando a festa, perdi o momento, preocupada com a foto, perdi pessoas pela morte, outras pelas minhas expectativas sobre elas, e essas dores foram mudando o meu sentido de prioridade. Pedaços quebrados do meu coração fizeram um verdadeiro trabalho de alquimia na minha maneira de entender a vida.
Seres humanos erram, e, muitas vezes, sinceramente! É o efeito do “defeito” de não sermos perfeitos. Quebrou? Vamos consertar! Temos uma porção divina dentro de nós e é ela quem nos fala de não julgamento, de compaixão, de solidariedade e de perdão.
Quando sabemos alimentar essa luz interior, vamos nos transformando em artesãos de gente, de nós mesmos, quando somos quebrados pela vida, e dos companheiros de viagem, quando a dor da separação nos surpreende. Aprendemos, assim, a olhar com olhos de amor e a desenvolver um jeito santo de reparar e restaurar pessoas. Sempre tem um jeitinho! O amor é a maior e a melhor cola do Universo!
Se em algum momento de dor ou desatino, nos sentirmos como um vaso quebrado, que possamos nos lembrar que Deus não descarta nada, Ele aproveita tudo! Deus não tem cesto de lixo!!!
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