Maya Santana, 50emais
Eu tenho verdadeiro fascínio por pessoas que, mesmo tendo passado de uma determinada idade, seguem em frente com determinação. Vivem a vida com ânimo, rompendo limites, fazendo o que têm vontade de fazer. É gente que acredita na própria capacidade de forjar um novo futuro. Por isso, achei muito bom este artigo de Mateus Campos e Naíse Domingues, de O Globo, mostrando que, em todo o Brasil, mais de nove mil pessoas com idade acima dos 60 anos se inscreveram para prestar o exame do Enem. Esses homens e mulheres merecem muitos aplausos. “Faço 70 neste ano, tive certeza de que esta era a hora. Não é preciso fazer nada mirabolante para voltar a estudar. É só encaixar os horários e querer muito.” diz uma das entrevistadas.
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Quando deixa o bairro de Ramos rumo ao centro da cidade pela manhã, Sandra Carpenter leva consigo seus cadernos. A carioca aproveita para revisar todo o conteúdo das aulas de preparação para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) antes de chegar ao trabalho na Companhia de Águas e Esgoto do Rio de Janeiro (Cedae), onde atua como terceirizada.
Ao fim do expediente, não importa se a bordo de ônibus, trem ou metrô, repete a mesma operação: em pé ou sentada, volta a revisar diligentemente as próprias notas. Duas vezes por semana, deixa o escritório direto para a Escola do Legislativo, onde o governo estadual promove um curso pré-vestibular gratuito.Esta dupla jornada teve início no começo do ano, quando ela decidiu que a hora de ingressar em uma instituição de ensino superior havia finalmente chegado.
Sandra, que espera cursar Fisioterapia no futuro, não é a única candidata ao exame a conciliar trabalho e estudos. No entanto, ela faz parte de um grupo muito específico, que representa apenas 0,2% do universo de 5.095.308 inscritos para a prova, marcada para os dias 3 e 10 de novembro. Às vésperas de completar 70 anos, ela é uma das 9.846 pessoas com mais de 60 a tentar a sorte na avaliação que dá acesso a universidades públicas e privadas em todo país.
São candidatos que, por motivos diversos, não tiveram na juventude as mesmas oportunidades de estudo que seus netos hoje têm. Quando Sandra nasceu, em 1949, metade da população brasileira de 15 anos ou mais nem sequer sabia ler, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Na época, somente 15% dos alunos matriculados na primeira série conseguiam chegar até o fim do curso primário. Ensino superior, então, era uma ambição reservada a uma pequena elite.
De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, o analfabetismo ainda está diretamente associado à idade no Brasil. Em 2018, 18,6% das pessoas com 60 anos ou mais não sabiam ler ou escrever. A taxa vem diminuindo: era de 20,4% em 2016 e passou para 19,2% no ano seguinte.
No entanto, o decréscimo está ligado a questões demográficas, como o envelhecimento da população. Afinal, gerações mais novas tiveram mais acesso à educação. O tempo de estudo das pessoas com 60 anos ou mais vem aumentando lentamente, de 6 anos em 2016 para 6,4 na pesquisa de 2018.
Sandra até concluiu o primário, mas precisou trocar a escola pelo trabalho no segundo grau. Fez um curso de datilografia, ingressou no mundo profissional e deixou o sonho da universidade em suspenso. Casou-se, teve quatro filhos, “adotou” três enteados e, quando viu, o tempo havia passado.
Quando já era avó, decidiu entrar no Núcleo de Educação de Jovens e Adultos (Neja) para terminar os estudos. O ano era 2013, e ela até foi aprovada em uma faculdade pública, mas os horários das aulas impediram que o sonho fosse adiante. Agora, já bisavó, resolveu parar de adiar o antigo objetivo:
— Meus netos dizem que não se fazem mais avós como antigamente — ri Sandra, que também pratica corrida nos fins de semana. — Faço 70 neste ano, tive certeza de que esta era a hora. Não é preciso fazer nada mirabolante para voltar a estudar. É só encaixar os horários e querer muito.
Intercalar os estudos com a vida profissional é o grande desafio de muitos deles, que, embora já tenham idade para se aposentar, precisam continuar ativos para ajudar nas contas da casa.
Heliete Mendonça passou 38 anos longe da escola. Agora, chega mais cedo às aulas para ler as apostilas e recuperar o tempo perdido. Aos 68 anos, ela vende quentinhas para se sustentar e diz dormir apenas 3 horas por dia para dar conta de estudo e trabalho
— Quero fazer Direito para defender a minha própria causa — sintetiza. — E para ajudar outras pessoas como eu, claro.
A costureira Doralice Macário da Silva, de 66 anos, também elege o emprego como a principal dificuldade nesta volta aos estudos. De segunda a sexta-feira, ela deixa o ofício em Ipanema e se dirige à Gávea, onde assiste às aulas do Pré-Vestibular Social Seja Mais, na PUC-Rio:
— A gente não tem muitas oportunidades novas — explica Doralice, que quer ingressar no curso de Serviço Social. — Minha vida foi de muita luta, muito trabalho. Eu mesma me criei. Quando surgiu essa oportunidade de um pré-vestibular gratuito, resolvi estudar porque os sonhos não devem morrer, independentemente da idade.
Entre os idosos candidatos ao Enem, é comum encontrar histórias de quem precisou interromper os estudos muito cedo. É o caso de Célia Maria dos Santos, de 62 anos. Após largar a escola para trabalhar ainda aos nove, ela agora está se preparando para o exame.
Por causa das dificuldades durante a infância e a adolescência, Célia só concluiu o ensino fundamental aos 17 anos. Depois, cursou o ensino médio como normalista, mas nunca chegou a lecionar. Em comum, todos têm certa dose de persistência. Afinal, esta também não é a primeira vez que Célia tenta ingressar na universidade.
Em 2017, através do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), iniciou o curso de Pedagogia, mas, já adulta e com quatro filhos, não conseguiu concluir a graduação. Neste ano, matriculou-se no pré-vestibular do Sindicato dos Trabalhadores das Universidades Públicas Estaduais do Rio de Janeiro (Sintuperj) para concorrer à tão sonhada faculdade de Psicologia.
A ajuda dos colegas de classe é um fator surpresa que incentivou ainda mais Célia a continuar com os estudo, apesar das dificuldades com as matérias.
— Tem um grupo de mensagens em que a representante passa o conteúdo e todo mundo se ajuda muito. Quando tive dificuldade em Física, um colega de turma sentou para me explicar tudo.
‘O que a gente aprendeu fica guardado’
A dificuldade de retornar à sala de aula após um longo período afastado dos estudos não foi empecilho para Francisco de Lima. Foram 42 anos fora das salas de aula quando até a volta aos livros. Aposentado após um acidente de trabalho, ele conta que a ajuda dos professores deixou o retorno aos estudos mais fácil.
— É difícil, mas, quando se tem vontade, não pode desistir. Não foi fácil voltar, tudo parece um bicho de sete cabeças. Mas tudo que a gente já aprendeu fica guardado, não é esquecido. Aos poucos, eu fui me readaptando à sala de aula — comenta Francisco.
Nem todos idosos que optam por fazer o Enem estão afastados da sala de aula. Aos 68 anos, Romana Ferreira está determinada a fazer faculdade de Direito.
— Já quis fazer enfermagem para cuidar das pessoas, também já quis ser policial, por causa dos meus irmãos. Mas a paixão pelo Direito foi o que me motivou a entrar no pré-vestibular comunitário para tentar o Enem.
Romana, que é camareira há 22 anos, aproveitou todas as oportunidades para estudar. No currículo, estão desde cursos profissionalizantes do Senac à faixa preta em judô, que aprendeu com aulas na comunidade onde vivia. Apesar do cotidiano atarefado, ela encontra tempo para estudar fora da sala de aula.
— Eu ainda tento estudar mais quando chego em casa — diz ela, que vive sozinha na Taquara. — Sento e pego a minha apostila para estudar Espanhol e Português, porque são as matérias em que tenho mais dificuldade — comenta.
E quem pensa que é difícil se enturmar em um ambiente onde os colegas são jovens está enganado. Romana conta que nunca sentiu um tratamento diferente.
— Sou muito popular aqui, parece que ainda tenho 17 anos.
A busca pela qualificação profissional e espaço no mercado de trabalho também é motivação para as pessoas da melhor idade tentarem o Enem.
É o caso da Regina Lúcia Soares, de 59 anos, que encontrou dificuldades para ingressar no mercado após concluir o curso profissionalizante de camareira, há quatro anos. Na época, não conseguiu emprego na área porque ainda não tinha completado o ensino médio.
Foi quando procurou o Neja, em uma escola pública perto de casa.
— Trabalhei a vida inteira como doméstica, mas sempre gostei de estudar. Há uns quatro anos, cheguei a fazer um cursinho de informática básico aqui pela comunidade porque sempre gostei de interagir e aprender. Fiz o Neja em dois anos e concluí no ano passado. Quando terminei eu pensei: “Agora vou ficar parada de novo?” — diz ela, que hoje faz o cursinho do Sintuperj.
A resposta foi a mesma de Sandra, Romana, Célia, Francisco, Doralice e os mais de 9 mil idosos estudantes que se juntarão aos outros 5 milhões alunos nos dois dias extenuantes de intermináveis questões de múltiplas escolha em busca de um futuro melhor e independência financeira.