Maya Santana,50emais
Hoje, 9 de maio, Ivan Lessa completaria 85 anos. Para lembrar o amigo e colega de trabalho que faz tanta falta, publico novamente o texto que escrevi quando ele morreu, em Londres, exatamente um mês depois de completar 77 anos, em 12 de junho de 2012:
Ivan Lessa foi o único gênio que conheci de perto. Quando cheguei à BBC, no início de 1988, levada por meu irmão, Zeca Santana, me surpreendi com aquele jornalista falante, fumando um cigarro atrás do outro, editando a crônica que acabara de gravar num pequeno estúdio, no oitavo andar de Bush House, no centro de Londres, e, ao mesmo tempo, conversando com Jáder de Oliveira, amigo-irmão que o antecedeu na despedida deste mundo – 20 de abril de 2011. O Serviço Brasileiro, como era chamado na época, tinha como diretor o competente e querido Luiz Alfredo Hablitzel, com quem Ivan se dava muito bem.
A minha surpresa foi constatar que ele, o mais que falado Ivan Lessa, um dos grandes do Pasquim, era um homem afável. Desde aquele março, durante mais de 24 anos, estivemos sempre em contato. Logo, ele me convidou para gravar um programa que fazia, Livros e Autores, sobre novos lançamentos literários na Grã-Bretanha.
Naquele tempo, Ivan também escrevia uma crônica, que lia no programa O Mundo Hoje, de meia hora, transmitido à noite para o Brasil, em ondas curtas. Mais tarde, com a modernização empreendida pela talentosa e incansável Márcia Poole, que substituiu Luiz Alfredo, a programação mudou. Ela era outra que Ivan gostava e respeitava muito. Antes das mudanças, quantos finais de semana eu, ele e Jáder passamos nos compridos corredores de Bush House trabalhando. Jáder, mineiro como eu, adorava fazer graça e Ivan ia atrás. Eu também fumava. De tempos em tempos, descíamos, eu e Ivan, para a cantina ou o clube da BBC e, imersos em nossas conversas – ele falava muito do Rio da década de 50 -, lá deixávamos a fumaça de vários cigarros.
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Ivan fumou durante mais de 40 anos. Assim como outros dois inesquecíveis colegas, Manoel Paulo Ferreira (falecido em 15 de janeiro de 2005) e José Antônio Arantes, tinha sempre um cigarro aceso do lado quando redigia seus textos. A genialidade, de que comecei falando, eu via ali. Em menos de meia hora, ele juntava um monte de palavras na lauda e todas faziam sentido. Era cáustico, ferino como ele só. E tinha tiradas geniais, muitas delas refletindo a sua desesperança e implicância com a humanidade e, em especial, com os brasileiros. Costumava explicar o insucesso da raça dizendo: “O barro é ruinzinho”.
A inteligência aguda o tornava um homem agitado, impaciente, angustiado. Às vezes estourava quando menos se esperava. Por trás do vulcão, quase sempre em erupção, havia, no entanto, o homem de sensibilidade infinita, eterno amante de livros, conhecedor sem igual de música popular americana e brasileira, intelectual de primeira – da turma de Paulo Francis, Millôr Fernandes, Jaguar e outros poucos.
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Estivemos muito próximos todo esse tempo. Quando a mãe, Elsie Lessa, jornalista e escritora moradora de Cascais, em Portugal, entrou em coma, ele se desesperou. Perdeu o fio da meada. Era muito ligado a ela. Logo veio o falecimento e, mais tarde, a cremação do corpo de Elsie. Estávamos na BBC. Faltava pouco para as 11h da manhã. Ele me chamou. “ Daqui a 10 minutos, a minha mãe será cremada”, disse. Debruçou-se sobre o computador e lá ficou entregue à dor.
Desde que deixei Londres, em 2002, mantivemos uma assídua correspondência via e-mail. Ele falava de tudo, mas, principalmente, da única filha, Juliana, 37 anos, que teve com a diplomata Anna Elizabeth Fiúza, a grande companheira de todos os tempos. Seguindo a tradição da família, Juliana (Foster, pois adotou o sobrenome do marido), é escritora, com três livros – há um quarto em preparação – lançados na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos. Totalmente desconhecida no Brasil, era o grande orgulho de Ivan.
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Em 9 de maio, completou 77 anos, 34 dos quais morando em Londres, outro de seus amores. Escrevi felicitando pela data. E recebi dele esse e-mail: “ Meu aniversário foi o horror dos horrores. Completei dia 2, 14 meses sem sair de casa, meu fôlego cada vez pior, com dificuldade vou do computador aqui no quarto à sala. TV, DVD, revistas. Perdi 18 quilos, envelheci 35.” E a confissão fatal: “Não consigo mais ler livros.” (…) Terminou o seu último e-mail para mim com uma declaração de amor à BBC: “Nestes 14 meses, não faltei uma única vez à BBC. Devo estar escrevendo cada vez pior, mas estou lá.”
Ivan escreveu até morrer. No mesmo dia em que era encontrado morto, sexta-feira, 8 de junho, o site da BBC Brasil publicava a sua última crônica, “Orlando Porto”.