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A modéstia é a marca de Neide Duarte, Coca para os mais chegados. Isso fica claro nas respostas que dá às perguntas da jornalista Ana Maria Cavalcanti. Na entrevista, a criativa, bem-humorada e intrépida repórter da TV Globo, uma das que trabalham lá há mais tempo, transmite uma imagem de si mesma bem aquém da profissional bem-sucedida, admirada pelos seus colegas de trabalho, com um currículo recheado de prêmios, noBrasil, na Argentina e em Portugal. Neide está se despedindo da TV Globo, depois de 32 anos dedicados à emissora que marcou a sua longa carreira profissional.
Paulistana, nascida no bairro da Barra Funda há 71 anos, a inquieta e múltipla Neide Duarte de Oliveira poderia ter se tornado uma grande atriz. Talento e formação não lhe faltaram. Estudou com nomes importantes, como o russo professor de teatro Eugênio Kusnet, e os mestres Sábato Magaldi e Lauro César Muniz, entre outros. E chegou a atuar em peças importantes, como O Banquete, de Mário de Andrade, e as As Criadas, de Jean Genet.
Mas foi o jornalismo, no início da década de 1970, que levou a melhor. O fascínio pela palavra surgiu muito cedo. “Fiz jornalismo porque gostava de escrever e me pareceu a faculdade mais próxima disso,” conta Neide, formada pela Fundação Armando Álvares Penteado.
Mas o fato decisivo para a escolha da carreira se deu bem antes. Foi uma visita à sede da Folha de S.Paulo – jornal onde veio a trabalhar mais tarde – quando ainda estava no Colégio. “Eu me lembro até hoje do cheiro da tinta no papel nas rotativas. A redação escura parecia uma agência de detetives. Todo esse cenário me encantou e me fez escolher a profissão.”
Entre suas tantas coberturas memoráveis, estão a histórica campanha pelas Diretas-Já e o acidente que matou o maior piloto que o Brasil já teve, Ayrton Senna. Com sucesso consolidado na televisão como repórter, Neide publicou, em 2006, o livro Frutos do Brasil – Histórias de Mobilização Juvenil. A obra é constituída de relatos de casos de jovens bem-sucedidos, recolhidos em viagens pelo Brasil e, mais tarde, foi transformada em documentário, dirigido pela repórter.
Veja o trailer:
Muitos de seus admiradores perguntam: onde anda Neide Duarte, que costumava ser vista diariamente nos jornais de TV? Até o fim do ano, continuará fazendo o que sempre mais gostou de fazer: suas excepcionais reportagens especiais, para o programa Globo Rural.
Neide prefere não comentar sua despedida da TV Globo e, sempre discreta, optou por guardar para si seus planos para depois de ganhar a liberdade.
Você vai conhecer um pouco mais da grande jornalista nessa conversa que ela manteve com Ana Maria Cavalcanti. Neide começa explicando por que escolheu o jornalismo. E não o teatro, por exemplo?
Fiz jornalismo porque gostava de escrever e me pareceu a faculdade mais próxima disso, naquela época. Não existia – como até hoje quase não existe – nenhum curso universitário de escrita criativa. O único no Brasil é o da Puc do Rio Grande do Sul, com o professor Assis Brasil.
Fora isso fui fazer jornalismo por causa do cheiro. No colégio, nós, os alunos, fomos visitar a Folha de S. Paulo e me lembro até hoje do cheiro da tinta no papel, nas rotativas. A redação escura parecia uma agência de detetives. Todo esse cenário me encantou e me fez escolher a profissão.
P – Como foi o início da sua carreira de jornalista?
R – Trabalhei no Jornal da semana, em Pinheiros, um jornal bem bacana, com bons profissionais, depois fui para a extinta TV Tupi, sempre como repórter, mas era difícil conseguir a câmera CP para gravar. Então, não dava pra sonhar em fazer uma boa matéria.
Trabalhei seis meses na Tupi. Depois, três anos de Folha de S.Paulo, na editoria de cidades, onde fazia todo tipo de matéria. Uma ótima escola.
Da Folha, fui para a TV Globo, onde fiquei 15 anos. Passei um ano no SBT, mais nove anos de TV Cultura e, em 2005, voltei para a Globo, onde estou até hoje.
P – Você sempre quis ser repórter ou já exerceu outras funções?
R – A vida inteira fui repórter. E sempre quis ser repórter. Não existe nenhuma outra função tão fundamental no jornalismo. É o coração do jornalismo. Tem luta, tem cansaço, descobertas, aventuras, perigo, amor, humanidade.
P – Você acha que lugar de repórter é na rua?
R – Claro, sempre na rua. É a rua que ensina a medida da vida, os rumos de um país, a história de um povo, as dores e as alegrias, a vida real. É só na rua que a verdade das coisas se revela.
Veja um compilado de algumas de suas grandes reportagens, começando com uma entrevista com Gal Costa:
P – Quais as lembranças mais fortes você tem de sua vida de repórter?
R – São muitas lembranças… a história de um menino de Alagoas que estava quase morrendo de desnutrição e depois sobreviveu; a queda das torres gêmeas em Nova York, em 2001, trabalho infantil na Bahia, documentário sobre jovens protagonistas de movimentos sociais no Brasil inteiro, falta de água no sertão, numa das maiores secas no Nordeste, o trabalho de mulheres indígenas no Xingu, coletando sementes para conservar a floresta. E tantas outras.
P – Já enfrentou alguma saia justa, tipo agressão física ou verbal?
R – Sim, mas foi na época da ditadura, quando alguns entrevistados, gente de poder, ou ligada ao poder, achavam que mandavam em tudo. Ranço da ditadura. Dei meus gritos com eles…
P – Você está há 32 na Globo. As pessoas te pedem autógrafo na rua? Vêm falar com você?
R – Não, essa fase já acabou. Eu estou no Globo Rural já faz uns cinco anos. Não apareço como antes quando fazia jornal diário.
P – Como vê a qualidade dos telejornais hoje?
R – Acho que hoje o telejornal caminha para mais matérias ao vivo” , mais parecidas com o rádio. É assim mesmo, esse modelo é uma necessidade do tempo em que vivemos, com tanta informação circulando rapidamente pelas redes sociais.
P – As condições de trabalho são melhores agora?
R – Acho que eram melhores, no sentido de que tínhamos mais tempo para fazer uma matéria, porque o mundo tinha um ritmo mais lento, sem a internet, nem celular.
Éramos cinco pessoas trabalhando na rua: repórter, cinegrafista, operador de VT, iluminador e motorista. Hoje são só o repórter e o cinegrafista. Um carro de uma cooperativa leva a dupla de profissionais, mas não ajuda em nada, praticamente não faz parte da equipe.
P – Como você faz para continuar tão em forma?
R – Em forma mais ou menos, né? Com a pandemia ficamos todos pelos menos dois anos em casa, pouco movimento. Depois de retomar, sinto que fiquei mais devagar na questão exercícios físicos.
P – Por que você tem o apelido de Coca?
R – O apelido quem me deu foi o grande Eugênio Kusnet, ator e diretor de teatro que trouxe o método Stanislavski para o Brasil. Fiz com ele e outros grandes mestres um curso maravilhoso de teatro, que durou três anos.
Kusnet, que era russo, começou a me chamar de Coca quando saiu a garrafa pequena de Coca-Cola, que parecia um corpinho de mulher.
P – Como você encara o seu próprio envelhecimento?
R – Normal, seguindo a vida. Sinto algumas limitações, mas vamos em frente. Viver é a nossa glória! O milagre de nascer, crescer e estar vivo. É o que conta.
Veja reportagem feita há mais de 40 anos: