Déa Januzzi, 50emais
– O que você faria se descobrisse que tem pouco tempo de vida?
Ainda bem que a gente não sabe, mas fora do Brasil está virando hábito os death cafés e death over dinners, encontros para conversar abertamente sobre a morte e como se deseja ser cuidado nos momentos finais. Há dois anos, o cinema Caixa Belas Artes, em São Paulo, em parceria com a especialista Ana Cláudia Quintana Arantes, – autora do livro “A morte é um dia que vale a pena viver”– promove o evento Cineclube da Morte. Depois dos filmes, o público participa de um bate-papo com o idealizador do projeto, Tom Almeida, que tem experiências pessoais no acompanhamento de familiares em cuidados do fim de vida.
Conversar sobre a morte parece terrível, mas há 10 anos vivi uma das mais dolorosas experiências com a partida de minha mãe aos 91 anos. Há tempos falo sobre a dignidade de viver e de morrer, pois apesar dos meus protestos, das minhas súplicas, Amélia, minha mãe, morreu sozinha, sem a presença dos filhos, entubada no Centro de Tratamento Intensivo (CTI) de um hospital em BH. Não há dor maior do que a de lembrar o pânico estampado nos olhos dela, quando a gente era obrigado a ir embora: “Não me deixem aqui sozinha!”
Olha que já conhecia o médico José Ricardo de Oliveira, da equipe de Cuidados Paliativos da Unimed BH. Juntos, fizemos uma série de matérias sobre doentes terminais. “Quando curar não é possível, a doença é um detalhe. O que importa nesses momentos é escutar, cuidadosamente, dor, sofrimento, angústia, solidão, desejo, medo, sorriso, gemido à procura de espaço para uma assistência da equipe interdisciplinar de saúde com dignidade, afeto, empatia, respeito, dedicação.
O controle efetivo da dor e de outros sintomas estressantes são atitudes do resgate da autonomia e da dignidade dos sujeitos com doença terminal”, diz ele, que se especializou em cuidados paliativos depois que o pai dele morreu no hospital clamando para voltar para casa. Ele era médico, mas não conseguiu livrar o pai dos protocolos hospitalares de então. O pai de José Ricardo morreu no hospital e o filho, de tanta dor, mudou de ramo, virou especialista em bioética e cuidados paliativos.
Apesar da mudança demográfica que indica mais tempo de vida, os velhos ainda continuam a morrer entubados em hospitais. José Ricardo sabe que mesmo assim os responsáveis pela elaboração dos currículos nas escolas médicas parecem não se preocupar com a formação de profissionais que atendam às necessidades em cuidados paliativos.
Lembro-me até hoje – o tempo não tira essas marcas da memória nem do coração, quanto mais da alma – da pele frágil e envelhecida de minha mãe, toda machucada, daqueles roxos púrpuros, por causa dos procedimentos invasivos e inúteis.
Ainda bem que hoje, pelo menos, não é mais tabu conversar sobre a morte. Com aval da Organização Mundial de Saúde (OMS) e do Conselho Federal e Medicina (CFM) podem ser adotados os cuidados paliativos, em uma abordagem para melhor qualidade de vida de pacientes, dos familiares e cuidadores. Em 2012, o CFM resolveu regulamentar as diretivas antecipadas de vontade como o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer receber quando estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente sua vontade.
O horizonte vai se abrindo para formas menos cruéis de morrer. Meu filho, por exemplo, não se cansa de repetir: “Você já escreveu sobre como quer ser tratada quando não puder mais decidir? Se quer ser enterrada ou cremada? Se quer ficar em casa ou no hospital, como quer o ritual de sepultamento?” Digo que basta ler as minhas crônicas para saber.
O assunto me fez assistir mais uma vez o filme Antes de partir, com Jack Nicholson e Morgan Freeman. Tive vontade de fazer minha lista particular, caso soubesse estar com os dias contados. No filme, os dois atores dividem o mesmo quarto de hospital, ambos com mais de 70 anos e o diagnóstico de câncer incurável. Eles, então, resolvem viver tudo aquilo que sempre sonharam e não tiveram tempo. A partir da lista de desejos de um deles, os dois partem para concretizar os sonhos.
– E você, o que faria antes de partir?
Acredito que gostaria de fazer coisas simples, bobas. Ficaria em casa para ver o meu filho dançar e dizer. “Adoro música. É a música que me faz viver e ter entusiasmo de acordar a cada dia”. Então, ficaria ali com ele dançando, girando, rindo até cair no chão, embriagada pela música.
Se, por acaso, estiver em um hospital, já disse e reafirmo: arranquem-me de lá, tirem tubos e toda a parafernália tecnológica, porque quero ter o direito de morrer em paz, principalmente se estiver muito velha, sem chance de sobrevivência. Arranquem-me do hospital, onde não posso estar perto das coisas simples, como o vento no rosto e o afago do sol. Levem-me ao cinema, ao parque, coloquem uma esteira no chão para que possa observar esse pedaço de céu que insiste em encher meu universo de luas e estrelas. Lembro-me como se fosse agora, que pedi para levar um som portátil para minha mãe quando ainda estava no quarto para que ela ouvisse a música que mais gostava “Tocando em frente”, interpretada por Almir Sater e Renato Teixeira. “Ando devagar, porque já tive pressa. E levo esse sorriso, porque já chorei demais”. Eles não deixaram, vocês creem?
Se pudesse, decretaria o fim dos CTIs para pessoas idosas (ou Centro de Tristezas Indizíveis, como definiu certa vez o amigo e terapeuta holístico Marco Aurélio Cozzi). Se fosse o último dia da minha vida, faria uma via-sacra nos hospitais e sequestraria todos os velhos que estão entubados e os levaria para passear pela cidade, mesmo que fosse o último ato de minha vida. Roubaria todos os velhos hospitalizados e os levaria para a Praça da Liberdade, onde estão as rosas e as fontes luminosas. No coreto, colocaria uma banda para tocar e faria com que eles andassem pela grama com os pés descalços. Se não pudessem andar, que rolassem na grama!
Se estivesse perto do fim, voltaria a rezar. Buscaria minha amiga Lucimara Evangelista, na Serra do Cipó, para fazer uma oração comigo, dessas sem dogmas, sem a ortodoxia das igrejas. Seria uma conversa sagrada, dessas que a gente tem só com o que há de mais elevado em nós mesmos. Nessa conversa com jeito de oração, pediria para que as pessoas se preocupassem mais com as outras, que amassem mais seus semelhantes, que os jovens tivessem oportunidades e voltassem a sonhar e que as crianças fossem educadas por adultos menos neuróticos e gananciosos. Que a natureza fosse mais respeitada, que as barragens de minério de ferro fossem expulsas para bem longe daqui.
Faria um hino às mulheres que estão sendo caçadas. Diria aos homens: não matem o melhor de si mesmos. Se pudesse pediria pelas mães que sofrem com a morte dos filhos. Gritaria muito, bateria tampas de panelas para fazer barulho. Ou mergulharia no mais profundo silêncio do meu ser para que pudesse contar os minutos que me separam da eternidade.
No mais, não deixo nada para depois. Celebro o ritual da vida todos os dias: se assim o desejar, tomo o melhor de todos os vinhos numa segunda-feira, na terça-feira vou andando mais de uma hora até uma cachoeira para um banho de descarrego. Santo remédio que não está na prateleira de nenhuma drogaria; na quarta, danço sozinha ao som da música Envelhecer, de Arnaldo Antunes, e degusto a comida dos deuses numa quinta-feira – e na sexta-feira fico sem fazer absolutamente nada. Assim vou festejando a solidão de envelhecer!
Esta crônica de Déa Januzzi foi publicada originalmente na edição de domingo, 31 de março de 2019, no Estado de Minas.
Oi Maya!
Ah! Que pena que não vejo mais meu comentario, pois eu e alguns familiares temos conversado sobre isso atualmente e gostaria de rever.
Abraço de Genoveva