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O filme “A semente do fruto sagrado”, do diretor iraniano Mohamad Rasoulof, é apontado pela jornalista Ruth Aquino como o único que pode vencer ‘Ainda estou aqui’ na disputa pelo Oscar.
A aguardada cerimônia de entrega da estatueta será no domingo, 2 de março. E o longa brasileiro, dirigido por Walter Salles, está concorrendo em três categorias: Melhor Atriz, Melho Filme e Melhor Filme Estrangeiro.
Em 2022, a estudante Mahsa Amini, de 22 anos, morreu após ser detida pela polícia da moralidade do Irã, por deixar uma mecha do cabelo para fora do véu. A tragédia provocou uma onda de protestos que deixou mais de 300 mortos no país.
Esses acontecimentos foram a base do filme de Mohamad Rasoulof, feito em sigilo. Claro, desagradou a elite religiosa que comanda o Irã com mãos de ferro. Perseguido, ele fugiu para a Alemanha.
Assim como “Ainda estou aqui”, explica a autora do artigo, publicado em O Globo, “o filme iraniano critica um regime opressor, a partir da história de uma família.”
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Sei que um filme me impacta quando não percebo que ele dura quase três horas. Foi o caso de “A semente do fruto sagrado”, um roteiro eletrizante. Arrebatador. Esse filme iraniano concorre ao Oscar internacional pela Alemanha, porque o diretor precisou fugir de seu país para não ser preso. Mohamad Rasoulof foi condenado pela República Islâmica a oito anos de cadeia e chibatadas, por “crimes contra a segurança do país”. Contra os aiatolás.
Assim como “Ainda estou aqui”, o filme iraniano critica um regime opressor, a partir da história de uma família. O filme do Waltinho confronta nossa ditadura militar. O de Rasoulof expõe a ditadura islâmica. O brasileiro conta uma história real, da família Rubens Paiva. O iraniano é uma ficção: um juiz de instrução enlouquece quando sua arma some em casa e ele começa a desconfiar da própria família. Os dois filmes desnudam os terríveis efeitos de regimes totalitários entre quatro paredes.
É uma pena que “A semente do fruto sagrado” seja tão negligenciado nos nossos cinemas. Uma sessão única – ou duas, às 11h da manhã e 20h30min – em três salas. Pode-se argumentar que é uma realidade remota para o brasileiro. Um filme longo, falado em farsi, com atores desconhecidos por nós. Mas é um equívoco não prestigiar esse filme. A história mira dilemas morais e universais. O certo e o errado. As nuances. E por isso nos envolve e nos cativa.
Não há quem assista e não saia impactado, mesmo sem conhecer os meandros do Irã, mesmo sem saber que parte do elenco, perseguido pelos aiatolás, escapou do país pelas montanhas. Não há quem não se choque com as imagens reais dos protestos de 2022 nas ruas, feitas com celulares. Foi uma repressão violenta a jovens indignados com o assassinato, pela polícia da moral, de uma jovem que usava o hijab (o véu muçulmano) deixando transparecer seus cabelos.
Talvez você não lembre esse caso. Mahsa Amini foi espancada publicamente, em Teerã, em frente ao irmão. Levou pancadas com um bastão nas mãos, nas pernas, foi levada por um carro da polícia. Um golpe violento na cabeça a deixou inconsciente e em coma por três dias e Mahsa morreu no hospital. Tinha 22 anos. Protestos tomaram o país. Jovens cortaram os cabelos em público.
Não se trata de um documentário. O filme apenas usa o pano de fundo real para entrar na casa de uma família em que o pai e marido, promovido a juiz de instrução, viola sua própria consciência para justificar os crimes do governo. Pressionado pelo chefe, com medo de perder a promoção e cair em desgraça, ele condena à morte jovens manifestantes, atropelando a Justiça.
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Só não contava com a rebeldia das duas filhas, que não aceitam se submeter – nem ao pai nem aos aiatolás. A mulher do juiz apoia o marido, cozinha, lava e passa. Apara seu cabelo e sua barba, cuida de seu sono, seus horários, suas rezas. Criticada pelas filhas por sua submissão, ela faz tudo para equilibrar a paz familiar, absolvendo o marido, protegendo as meninas, tentando reconciliar todos. Mas não consegue.
A arma do juiz, que ele ganhou como proteção pessoal, desaparece. Começa aí a paranoia. Que divide ainda mais a família. Ele desconfia das filhas no início e, depois, da mulher. Torna-se o espelho do regime islâmico dentro de casa, oprimindo as meninas. A interpretação feminina em “A semente do fruto sagrado” é brilhante.
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Não acredito que o iraniano saia vencedor em Los Angeles. O Oscar internacional costuma surpreender. Mas é o único filme que poderia vencer, com justiça, “Ainda estou aqui”.
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