Maizé Trindade
50emais
No final de 2018, recebi o convite para escrever a biografia de Luiz Oswaldo Sant’Iago Moreira de Souza. O convite me chegou, formulado por um amigo comum, Sergio Riede, que havia lido meu primeiro livro Travessia: fragmentos de um naufrágio. Relutei e contra-argumentei: “Não sou escritora. Sou uma escrevinhadora. Tenho uma escrita fragmentária! Sou alguém que escreve por prazer, não por ofício, Além disso, não tenho experiência com biografias, coisa que exige fôlego”.
Sergio insistiu. Me ligou outras vezes. Por fim, me rendi. Aceitei o desafio. Então me fiz esta pergunta: “Quem merece uma biografia?”. Leitora voraz, especialmente de biografias, fui levada a crer que os merecedores de registro biográfico eram as pessoas notáveis, célebres, famosas.
Mas Luiz não fazia este tipo. Na verdade, Luiz é um anônimo desconhecido, embora seja um ser admirável. Era preciso contar a sua história, relatar seus caminhos, registrar sua trajetória. Não pela sua notabilidade ou celebridade. Exatamente pela sua capacidade de permanecer anônimo, apesar da sua importância. Por isso aceitei o desafio de escrever sobre ele.
Quem é Luiz
Luiz é um ser multidimensionado: missionário, político e evangelizador; pedagogo, professor e formador de educadores; sindicalista, militante e ativista social; trabalhador bancário, gestor e executivo; escritor, filósofo e poeta.
Em todas estas dimensões, a palavra é instrumento poderoso. E ele sabe como usá-la. Luiz é homem “de palavra” e “da palavra”. O livro oferece algumas pistas sobre esta minha percepção.
As primeiras viagens iniciaram-se em abril/2019. Desde então, entrevistei presencialmente, remotamente ou por roteiro, quase 60 pessoas e colecionei mais de mil páginas de transcrições de entrevistas. Li e reli cada uma delas. Daria para escrever dois ou três livros. Como organizar este material? Como estruturar o livro?
Luiz me indicou o caminho quando o provoquei pedindo-lhe para fazer o exercício de lançar sobre si mesmo um “olhar de fora”, como se fosse uma terceira pessoa. Então, Luiz me respondeu: “Tenho muita dificuldade de me ver assim, de fora, porque eu olho muito para dentro. Eu me questiono muito. Sou uma miscelânea. Sempre fui multidirecionado. Não sou só isso ou aquilo. Sou um bocado de coisas e também a soma de muitas coisas”. Estava dado o caminho. E ele me indicava que era pela palavra.
O próprio Luiz me lembrou de uma cena da novela adaptada do livro “Gabriela, cravo e canela”, de Jorge Amado, em que Malvina, filha do Coronel (interpretada pela atriz Elisabeth Savalla) começou a namorar o professor e a mãe lhe perguntou: “O que é o professor na ordem das coisas? O professor não tem poder. Não tem arma. Não tem dinheiro”. E Malvina respondeu: “Mas tem a palavra!”
Foi assim que a palavra ganhou status de tema transversal, linha que alinhava as ideias, costura o texto e dá suporte à estrutura do livro. A partir daí, mergulhei na vida do Luiz e tentei eleger as palavras mais significativas para representar sua trajetória. O texto se construiu ao redor de palavra, mas a palavra amalgamada com a vida do Luiz.
Sem datas ou cronologia
O livro encontra-se estruturado em sete capítulos, todos iniciados por uma palavra-chave ou palavra simbólica que reúne diversos acontecimentos da vida do Luiz e por uma epígrafe pinçada dos seus próprios depoimentos. A escolha dessas palavras exigiu-me várias releituras dos depoimentos. Com a ajuda de uma jovem historiadora, selecionei os trechos das entrevistas que tinham afinidade com o tema. Isto me permitiu “ir e voltar” na vida do Luiz e dialogar com as pessoas entrevistadas, sem me preocupar com datas ou cronologia.
O capítulo inicial – Primeiras Palavras – descreve o cenário da minha chegada a Quixadá para as nossas primeiras conversas. Nelas, o Luiz relembra seus primeiros tempos na cidade, suas atividades políticas, seu sonho de fundar uma faculdade no Sertão Central do Ceará para formar professores. Mergulha também nas lembranças dos pais, Oswaldo e Maria da Glória, e das irmãs, Margarida e Heloísa.
O segundo capítulo – A Palavra Desafiadora – relata episódios da sua audácia infanto-juvenil, característica que soube manter ao longo da vida. Trata-se do seu atrevimento em contestar verdades, formular perguntas zombeteiras ou comentários sarcásticos. Luiz é brincalhão, inteligente, sagaz. E sabe como utilizar estas características em todos os momentos.
A Palavra Evangelizadora que dá nome ao terceiro capítulo, focaliza sua longa caminhada em busca da vocação religiosa. Sua trajetória teve início em 1958 quando, aos 11 anos, ingressou no Seminário dos Salesianos, em Carpina, Pernambuco, onde permaneceu por seis anos. Em 1964, ingressou no Noviciado, em Jaboatão dos Guararapes e, um ano depois, transferiu-se para o Seminário Salesiano na cidade mineira de São João del-Rei, onde viveu até o início de 1967.
Todos nordestinos
Dois anos depois, aos 22 anos, decidiu abandonar a vida religiosa, mas a opção pelos excluídos tornou-se sua nova religião, sobretudo a opção pelo povo pobre do Nordeste, região onde escolheu permanecer.
O quarto capítulo – A Palavra Criadora – narra seus tempos de construção do núcleo familiar. Nele, ecoam as vozes dos familiares mais próximos, cujos depoimentos, ao contrário do que ele previra, foram generosos, não por polidez ou benevolência, mas, creio eu, por justiça e doçura.
O capítulo cinco – A Palavra Cuidadora – focaliza sua passagem pelo Banco do Brasil, onde ocupou várias funções, de executor a representante eleito pelos funcionários para o Conselho de Administração do banco; de Chefe do Departamento responsável pela educação corporativa a Vice-Presidente de Gestão de Pessoas e Responsabilidade Socioambiental, cargo que assumiu em 2003, a convite do então recém eleito Presidente, Lula da Silva.
A Palavra Libertadora que nomeia o sexto capítulo focaliza os aspectos mais relevantes das suas atividades evangelizadora, educacional e política. Para ilustrar estas dimensões escolhi três personagens ícones na sua área de atuação, com os quais Luiz sempre manteve proximidade: Dom Hélder Câmara, Paulo Freire e Lula da Silva. Todos, como o Luiz, igualmente nordestinos.
Por último, o sétimo capítulo – Outras Palavras – reúne os depoimentos de todos e todas que, ao longo de 2019, 2020 e 2021, aceitaram o convite e contribuíram para iluminar aspectos deste ser multifacetado chamado Luiz Oswaldo.
Os depoimentos reúnem muitas convergências, mas revelam também divergências. O próprio Luiz me estimulou a ouvir vozes discordantes. Nas minhas escolhas, privilegiei aspectos que, na minha opinião podem ajudar a compor imagem aproximada de quem é Luiz Oswaldo.
Plantar um livro
O livro tem apresentação de Nita Freire, viúva de Paulo Freire; posfácio de Erika Kokay, deputada distrital pelo PT-DF e contracapa de Frei Betto, que esteve presente ao lançamento, em Belo Horizonte.
Em 1998, conheci Lúcia Afonso, poeta, pesquisadora e professora da Faculdade de Educação da UFMG. Ela me presenteou com um livro de poesias de sua autoria que se chama Delicadeza. Na página seis do livro, há um poema intitulado Simples que diz:
“Três coisas simples bastam na vida:
Plantar um livro,
Gerar uma árvore
e escrever um filho”.
O encanto poético que Lúcia produz ao brincar com as palavras tem o mesmo poder de sedução e boniteza das palavras que o Luiz sempre valorizou ao longo da sua vida e que o Coletivo Linhas do Horizonte, do qual sou integrante, soube transformar em verdadeira obra de arte para presentear o Luiz, no dia do seu aniversário, um dia depois do aniversário de Frei Betto, presente ao lançamento. Esta data nunca será esquecida.
Após o evento concluí que, depois de ouvir tantas pessoas e fazer uma investigação criteriosa, todos podemos nos tornar merecedores de uma biografia, por mais anônimos que possamos ser. Basta termos marcado nossa trajetória pela coerência e pelo compromisso com causas coletivas. Este é o exemplo do Luiz.
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