Márcia Lage
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Além de tudo o que já se falou da Glória Maria – pioneira na TV brasileira, primeira preta a se destacar e a ser respeitada dentro e fora da tela, inventora das reportagens participativas, etc e tal -, gostaria de ressaltar o seguinte: Glória Maria, embora exuberante na carreira, foi discretíssima em sua vida pessoal. E o foi por quê?
Porque rasgou todas as cartilhas de bom comportamento da moral arcaica da sociedade brasileira, agindo sem alarde no empoderamento de si como mulher, como profissional, como afrodescendente e pobre, num país onde a ascensão social é carimbada no berço.
Sim. Não vamos negar que somos um país de castas, parecido com a Índia. Até aqui você pode ir, mulher. Até aqui eu deixo você chegar, preto. Até aqui eu te tolero, pobre.
O que Glória soube fazer, assim como Pelé, foi driblar essas linhas imaginárias – porém intransponíveis de tão bem construídas – e surpreender goleiros com chutes fora dos ângulos convencionais.
Usou a profissão de jornalista para viajar o mundo todo, sem gastar do seu bolso. Criou suas próprias pautas. Saiu da chatice da cobertura jornalística diária e se deu ao respeito falando de amenidades.
Soube captar o desejo das pessoas de viver além da mesmice do cotidiano, mostrando a elas lugares remotos, belezas indescritíveis, culturas muito, muito diferentes da nossa.
A mensagem subliminar de suas reportagens era: Quem vence seus próprios medos e se arrisca tem mais oportunidades de ser feliz.
A jornalista mergulhava em si mesma à medida em que viajava. Casou-se, mas não esnobou seus namorados, não posou de mulherzinha carente nem de super mulher incapaz de amar.
Viveu livremente sua sexualidade, evitando expô-la, o que eu considero uma delicadeza.
Ninguém precisa alardear suas conquistas e, sob este ponto de vista, Glória foi extremamente discreta.
Quem sabia o salário dela na Globo, a não ser o RH da empresa? Que herança ela deixa para suas duas filhas? Que carro tinha? Vestia roupas de brechó ou de grife? Onde alisava os cabelos e por quê?
Se perguntassem, talvez respondesse: “O cabelo é meu, faço dele o que quiser”.
A mulher que se recusava a contar sua idade – por se enquadrar absolutamente em qualquer uma e em todas – não fez propaganda para nenhuma marca. Não se vendeu. Não se “coisificou”.
A única coisa que Glória Maria fez dentro do padrão que se espera de uma mulher foi ser mãe. E mesmo isso ela não fez como todas. Não teve crise de meia idade, não teve medo de ser só. Foi mãe por acaso, por impulso e intuição, beirando os 60 anos.
Encontrou as filhas num orfanato, se apaixonou pelas meninas e arriscou, como sempre fazia. A adoção mostrou-lhe a profundidade e a extensão dos caminhos do amor. E ela se entregou à nova jornada, com alegria e responsabilidade.
Deve ter ficado aturdida quando o câncer lhe mostrou que ninguém escapa do adoecimento e da morte. E que não temos controle algum sobre nossa peregrinação aqui na terra.
Porém, já havia aprendido muito sobre isso nos ensinamentos budistas, viagens pela Índia,Tibete, Nepal, Camboja, Vietnã, Butão.
Quero crer que sua morte foi tranquila. Repleta de recordações e consciente de que havia feito o melhor que pode.
Tive um pouco de pena das meninas, duas vezes órfãs e ainda adolescentes. Mas logo ouvi seus colegas dizerem que cuidariam delas.
Glória Maria, ao que tudo indica, não deixou inimigos no mundo competitivo em que trabalhou. Concluo que foi sábia. De enorme inteligência emocional.
Seu jeito de viver é o grande tributo que deixa às filhas. Serão felizes, livres, amadas e autônomas, como foi a mãe. Com essas ferramentas, seguirão em frente. Saberão traçar seu próprio destino.
E nós, que a tivemos próxima por cinco décadas, aprendemos mais sobre viver e morrer.
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