*Ana Regina Reis
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Estudei medicina na então Escola Paulista de Medicina, numa época em que não havia sala para as mulheres trocarem de roupa no centro cirúrgico e pegava mal usar calça comprida. Fumar na rua era outra proibição para “mulheres honestas”. Éramos 20% da turma, as garotas. No hino dos estudantes epemistas, bradava-se “medicina papa fina não é coisa de menina”, versinho cretino que conseguimos mudar para “já é coisa de menina”.
Acho que hoje deve haver uma sala das médicas no centro cirúrgico, com cafezinho e poltronas para descanso, como os senhores doutores tinham. Eu sempre gostei mais de sociologia, antropologia e história do que de anatomia. Então foi muito penoso o começo do curso, um massacre para neurônios mais sonhadores. Acabei encontrando na Medicina Preventiva um lugar mais adequado às minhas visões de mundo.
Quando acabei o curso queria fugir para longe das doenças, da ditadura, da tutela da minha mãe.Trabalhei 6 meses numa empresa de convênios, juntei o dinheiro da passagem no navio cargueiro e os mil dólares que se podia levar. E lá fomos, duas amigas e eu , passar um ano sabático com a cara e a coragem para a Europa. Eu fiquei em Paris, onde trabalhei como babá, distribuindo propaganda nas ruas e numa loja de fotografias. Era tudo mais fácil naquela época, um mundo menos excludente .
Voltando ao Brasil, comecei minha vida profissional no IPEA, que na época era ligado diretamente ‘a presidência da República. Havia lá um corpo técnico com pensamento crítico bem explícito. Era muito curioso encontrar esse ambiente de trabalho em pleno governo Geisel (1974 e 1979) . Dizem que o general chamava o IPEA de “meu aparelhão”. Aparelho , naquele tempo era gíria para lugares de encontros da turma na clandestinidade.
Para mim foi uma escola muito rica. Pensar a saúde e a alimentação do povo em nível federal era um desafio estimulante. É claro que nem tudo que propúnhamos era aplicado, mas o pouco que passou foi semente para políticas posteriores, como o Bolsa Família, o incremento da agricultura familiar, a merenda escolar com produtos naturais e de produção local e o SUS.Tudo isso veio 40 anos depois.
Trabalhei posteriormente em prefeituras como a de Ubatuba e Osasco, implantando políticas que havíamos proposto lá no IPEA. Essas demoraram só uma década…
Foi em nível local que pude trabalhar e conviver com as mulheres do meio chamado popular, as mulheres que têm uma vida “simples”. São as vidas mais complicadas que conheço, e elas incríveis planejadoras, especialistas em gerir conflitos e dificuldades de situações extremamente complexas. Aprendi muito com elas, as mulheres negras, as caiçaras, as nordestinas.
Com a explosão do feminismo nos anos 1970, a chamada segunda onda, vi que meu movimento tinha chegado e envolvi-me intensamente com as ativistas, principalmente os grupos que trabalhavam a questão da saúde, da procriação e da sexualidade.
Nessa época voltei a Brasília e fui trabalhar no Ministério da Saúde, no Programa de Assistência Integral `a Saúde das Mulheres, o PAISM.
Todo o processo que se desenvolvia então foi um processo histórico. Grupos feministas impulsionavam a implementação do programa e o ministério avançou muito nessa questão.
A festa durou durante o início da “Nova República” até que veio a motoniveladora Collor que botou quase tudo abaixo. Toda uma proposta de ver as mulheres como seres inteiros, com diversas fases de vida, que não podiam ser resumidas `a maternidade, que tinham direito a autodeterminação e a serem sujeitas nas decisões de suas vidas. É demasiado óbvio, mas parece que os patriarcas não estão, ainda hoje, dispostos a aceitar.
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Tive contato com feministas de diversos países, houve um tema específico que me apanhou. Eu acredito que há temas que entram na vida da gente, como se não fosse escolha lidar com eles. Foi o que chamaram, as feministas resistentes a essas tecnologias, a questão da engenharia genética e da reprodução, que ficou conhecida no Brasil como bebê de proveta, um termo altamente inadequado. Como quase tudo que vem das novelas. Pela minha formação médica, pude vislumbrar as consequências que as manipulações podem produzir.
Fui a muitas conferências e seminários na Alemanha, no Bangladesh, na Espanha, nas Filipinas, discutindo e apresentando a situação brasileira. As mulheres do países do Sul, o famoso Terceiro Mundo, articulávamos essas novas tecnologias com as políticas de controle de poopulação que os países centrais impunham-nos. Essas questões ainda estão aí, sem resolver, mas hoje a urgência da crise ambiental se impôs, com razão.
A minha geração viveu muitas situações horríveis e outras tantas maravilhosas. A energia de grande parte da juventude dos anos 1960 e 1970 foi criativa, combativa. Eu fui e sou fruto desses tempos, como somos hoje, todas, pessoas desafiadas a mudar o modo de vida, as perspectivas.
Eu só queria ter uma velhice tranquila, vivendo em Salvador, onde aprendo todos os dias com a cultura negra baiana, o modo de ver as coisas, de agir no mundo que essa gente incrível tem. Não tenho como esperar mais 40 anos para acontecer.
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