DEVE TER SIDO um demônio zombeteiro disfarçado de anjo que inventou que a velhice é a “melhor idade”. Chamar velhice de “melhor idade” só pode ser gozação ou ironia.
O que me faz lembrar o acontecido há muitos anos. Naqueles tempos não havia o orgulho em ser negro. As alusões à cor eram tão proibidas quanto as sugestões sexuais. “Ela está grávida” -ninguém dizia isso, a palavra “grávida” era obscena, chula. Em vez da verdade nua e crua, uma expressão que todo mundo entendia sem que a palavra obscena fosse pronunciada era “Ela está num “estado interessante'”…
Pois uma família protestante se preparava para receber a visita de um conhecido pastor negro. (Um parêntese. Nos Estados Unidos, a palavra “negro” era e é ofensiva. Em vez de “negro” [“nigro”] usa-se “black”, “black is beautiful”. A palavra “negro” era mais ofensiva ainda na sua forma corrompida “niger”.
As crianças eram educadas para o racismo como se fosse a coisa mais natural, e eram ensinadas a cantar numa brincadeira “Eeny, meeny, miny, moe, catch a niger by his toe” -“Agarre o crioulo pelo dedão…”).
Acontecia que o tal pastor -isso era bem conhecido de todos- sofria de um humilhante complexo por causa da sua cor. Os hospedeiros ficaram angustiados diante da possibilidade de que sua filha de seis anos -um doce de menina- fizesse inocentemente alguma referência a esse fato. Trataram então de adverti-la: “Não diga jamais que o reverendo Clemente é negro…”.
A menina ouviu e aprendeu. O hóspede chegou, tudo estava correndo às mil maravilhas, a menina doce se apaixonou pelo reverendo Clemente e, num momento de carinho, assentada no seu joelho, ela tomou a sua grande mão negra nas suas minúsculas mãos brancas e disse: “Sua mão é branquinha, sua mão é branquinha…”.
É precisamente isso que acontece quando os alto-falantes das salas de embarque nos aeroportos anunciam: “Terão prioridade para o embarque gestantes, crianças, pessoas com dificuldade de locomoção e pessoas da melhor idade”.
Já reclamei com os funcionários, dizendo-lhes a minha irritação. Eles me disseram que nada podiam fazer porque as ordens vinham de cima. Concluo que “em cima” não há nenhum velho.
O que é melhor? Ser respeitado ou ser desejado?
Velhice é quando a gente começa a ser tratado como “objeto de respeito” e não como “objeto de desejo”. Mas o que quero não é ser olhado com respeito, mas com desejo…
Aconteceu faz 25 anos, uma tarde, no metrô, vagão cheio, tudo bem, eu me via jovem, pernas fortes, segurei-me num balaústre. Meus olhos começaram a passear pelo rosto dos passageiros -cada rosto é mais misterioso que um universo- até que meus olhos se encontraram com os olhos de uma jovem que me olhava, eles, os seus olhos, sorriam para mim e eu fantasiei que ela me desejava.
Ficamos assim por alguns segundos trocando olhares de namorado até que ela, num gesto delicado, se levantou e me ofereceu o seu lugar… Seu gesto me disse sem palavras: “O senhor é velho. Eu o respeito. Eu lhe dou o meu lugar…”. Nesse momento percebi que a minha idade era a pior de todas. A melhor idade era a dela, da mocinha que me deu o lugar…
Sugiro um nome diferente para essa idade, que não é ironia, mas poesia: “Pessoas portadoras de crepúsculos no seu olhar…”.
Este artigo foi publicado pela Folha de São Paulo em fevereiro de 2009.