Inacreditável que Sônia Gomes, com obras espalhadas por museus importantes de vários países, seja quase desconhecida do grande público. Para se ter uma ideia da importância dessa artista, nascida no interior de Minas Gerais, ela está trabalhando em obras para três exposições: em São Paulo, Los Angeles e Nova York. Um importante curador mexicano, Pablo Léon, disse o seguinte: ““Sônia Gomes é provavelmente a artista mais importante da última década no Brasil,”, e continuou: “Suas esculturas […] são belas e sedutoras, mas também desconfortáveis e inquietantes, dão forma e estrutura às histórias silenciadas da luta e resistência do povo negro no Brasil, em especial das mulheres”, escreveu ele. Sônia é considerada uma artista tardia. “Acho que a gente nasce artista, então, em alguma fase da sua vida, a arte vem à tona, se não você enlouquece,” afirma ela.
Leia a reportagem de Eduardo Simões para O Globo:
Em um sábado de abril de 2015, Dona Maria dos Anjos, moradora do interior do Rio, leu uma reportagem sobre a mineira Sônia Gomes, única artista plástica brasileira selecionada para a mostra principal da Bienal de Veneza naquele ano. Com o texto, aprendeu que as obras de Sônia eram como mosaicos tridimensionais de tecidos diversos, muitos deles doados por amigos ou desconhecidos, “o que havia nos armários, coisas da família que não tinham coragem de jogar fora”.
Ato contínuo, Dona Maria lembrou-se de seu vestido de noiva, guardado por mais de 50 anos, e o enviou para o ateliê da artista em Belo Horizonte. Cerca de três anos depois, Sônia apresentou em Porto Alegre, durante a Bienal do Mercosul, a obra resultante, intitulada “Maria dos Anjos”. “O vestido era de seda pura, com uns três metros de cauda, tão grande que não deu para trabalhar com ele no ateliê. Retomei somente depois que me mudei para São Paulo em 2016 e o levei para o galpão da galeria (Mendes Wood DM, que a representa)”, conta Sônia, aos 73 anos, em conversa in loco em seu novo ateliê, no bairro de Pinheiros (São Paulo).
Em novembro do ano passado, a artista passou a trabalhar neste endereço, onde o pé-direito alto facilita a criação de obras de grandes dimensões, uma escala inaugurada justamente com sua participação na bienal italiana. No sobrado, Sônia agora prepara, simultaneamente, trabalhos para três exposições: a primeira ocorre em setembro, na galeria paulistana; a segunda, em novembro, na Blum & Poe, de Los Angeles, e a terceira, na Pace de Nova York, em maio de 2022. “Ao mesmo tempo em que sua obra é inegavelmente singular e brasileira na origem, ela é reverenciada internacionalmente, por meio de uma presença forte em museus e do apoio de colecionadores em todo o mundo”, avalia Adam Sheffer, vice-presidente da Pace, que prevê grande sucesso com a mostra da artista, cuja carreira, considerada tardia, vem traçando, nos últimos anos, uma curva de ascensão.
Sônia Gomes nasceu em 1948, em Caetanópolis, cidade no interior de Minas Gerais que no passado fora um polo nacional da indústria têxtil. Seu pai trabalhou em uma das fábricas locais. Ainda que os teares e a produção artesanal de rendas e bordados tenham informado seu imaginário já na infância, a funcionalidade das roupas não lhe interessava tanto quanto seu potencial escultórico. Adolescente, Sônia fazia bijuterias, bolsas e roupas, para si mesma ou para vender. Estudou Direito, ao mesmo tempo em que dava aulas numa escola primária para se manter.
Trabalhou como advogada por um tempo e, assim que comprou um apartamento pequeno em Belo Horizonte, largou a profissão. Queria tentar viver do desfazer e refazer roupas. “Mas aí as peças foram tomando uma dimensão que não dava mais para usá-las. Foram se afastando cada vez mais de sua função original para se aproximar ‘do fazer artístico’”, conta. Na década de 1990, teve aulas de arte na Escola Guignard, da UEMG.
A primeira grande exposição viria em 2004, na capital mineira, com obras feitas a partir de suas roupas e de itens garimpados em brechós. Foi nesta época, que as memórias de outras pessoas passaram a se enredar na trama. Amigos ou gente que ela nem conhecia, como Maria dos Anjos, passaram a lhe enviar peças.
Pedro Mendes, sócio da Mendes Wood DM, é uma dessas pessoas. Ele havia sido apresentado ao trabalho de Sônia por sua irmã, Joana, de quem a artista fora colega na Guignard. Em 2002, quando a mãe deles, Maria Sylvia, morreu, saias e outras peças foram para o ateliê da artista. “Ao longo dos anos, foram aparecendo estes fractais de nossa vida em suas obras”, conta.
Clique no vídeo para conhecer um pouco do trabalho de Sônia Gomes:
Algo parecido ocorreu com os colecionadores Mara e Marcio Fainziliber. Eles conheciam o trabalho de Sônia desde 2012, quando pela primeira vez compraram uma de suas obras. Mas somente dois anos depois a história do casal viria a se materializar numa escultura. Em 2014, Mara fez uma encomenda a Sônia a partir uma coleção peculiar que havia pertencido a seu filho, Ricardo, morto em 2009. “Ele adorava carnaval, ia muito para a Bahia e colecionava abadás. Perguntei se ela faria um trabalho a partir deles. Também pedi para acoplar um tamborim. Um ano depois, ela chegou com o trabalho lá em casa, no Rio, e o instalou, dizendo que era uma obra para ser abraçada”, conta Mara.
A colecionadora considera Sônia, Beatriz Milhazes e Adriana Varejão os três principais nomes da arte contemporânea no Brasil. Sempre procurou divulgar a obra da artista junto a galeristas e curadores fora do país. O resultado mais bem-sucedido desse empenho é uma aquisição feita pelo Guggenheim, por meio de sua participação no Latin America Circle, grupo de colecionadores de arte que promove a produção da região. Sem título, a obra de 2009 foi adicionada ao acervo do museu nova-iorquino em 2018, pelas mãos do curador mexicano Pablo Léon de la Barra.
No ano passado, instado pela Pinacoteca de São Paulo a apontar qual era sua obra de arte brasileira preferida, o renomado curador mexicano citou justamente a que está no Guggenheim. “Sônia Gomes é provavelmente a artista mais importante da última década no Brasil. Suas esculturas […] são belas e sedutoras, mas também desconfortáveis e inquietantes, dão forma e estrutura às histórias silenciadas da luta e resistência do povo negro no Brasil, em especial das mulheres”, escreveu, à época, Pablo Léon. Sônia foi a primeira artista negra, viva, a apresentar uma mostra individual no Masp, em 2018. Em exibição no museu e na Casa de Vidro, “Ainda assim me levanto” apresentou trabalhos então inéditos, que incorporavam galhos e até troncos à produção da artista. “Sua maneira de lidar com tecidos fadados ao descarte, cordas, utensílios e outros objetos do cotidiano faz uma contribuição bastante singular à escultura brasileira. Quem foi ver a mostra teve uma experiência sensorial e estética, claro, mas também didática acerca do fazer escultórico, sobre espaço negativo, volume, equilíbrio, composição e textura”, avalia Amanda Carneiro, à frente da curadoria da exposição.
Autora de ensaio sobre a artista em um livro publicado pela editora Cobogó, Solange Farkas considera que, apesar de ela ter uma carreira recente, já se insere num lugar de prestígio na cena da arte contemporânea global, por meio uma produção intimamente ligada ao Brasil. “A obra da Sônia diz muito respeito à afirmação da memória e da identidade. E ela não parte de uma questão teórica, é algo extremamente intuitivo, atravessado por questões pessoais, numa chave que conecta passado e presente”.
O trabalho da artista está presente também nos acervos do Pérez Museum, do MoMA e, em breve, da Tate Modern. A consolidação crescente de seu nome, nos últimos seis anos, junto a instituições e ao mercado é destacado por Fernanda Feitosa, fundadora e diretora da SP-Arte: “A trajetória dela é superbonita, merecedora do reconhecimento de um fazer artístico extremamente importante, que resgata uma herança feminina e de história individual, e em que muitas pessoas se veem refletidas. No exterior, você encontra os trabalhos dela na casa de vários colecionadores”.
Em março deste ano, uma criação de Sônia datada de 2013 foi arrematada por mais de US$ 138 mil na casa de leilão britânica Phillips. Especialistas apontam que o mercado já acomodaria lances de até US$ 200 mil, o que no câmbio atual passa de R$ 1 milhão. Valor digno de nota, por ter ultrapassado de longe a estimativa inicial, cifra em torno de US$ 12 mil, e também o lance final de US$ 25 mil que outro trabalho seu havia alcançado em 2018 na Sotheby’s. Chefe do departamento de arte latino-americana da Phillips, Jeannette van Campenhout atribui o bom desempenho à forte presença internacional de Sônia, cujas obras, hoje em alta demanda, “falam de identidade, vulnerabilidade e invisibilidade de seres humanos, especialmente de mulheres negras no Brasil”.
Ponto de partida de sua carreira, o vestuário voltou a ter interseção com o processo criativo de Sônia no fim de 2019, quando a jornalista Lilian Pacce a convidou para fazer parte do segundo ciclo do projeto Masp Moda, de que era curadora. A ideia era promover a colaboração entre Sônia e um estilista (o pernambucano Gustavo Silvestre), inspirada na “Coleção Rhodia”, que o museu realizou nos anos 1960. Foram criadas quatro peças, que a instituição ainda vai apresentar, na forma de uma exposição ou um desfile. “A Sônia tem algo da Louise Bourgeois, no sentido de ser visceral e de mergulhar fundo no universo feminino. Na moda a gente chamaria o que ela faz de upcycling, que é dar novos significados às peças que ela transforma belamente, incluindo também o crochê e tricô, como boa mineira”, diz Lilian. “Com a produção do Gustavo, houve quase uma sobreposição, quando os dois se conheceram deu uma liga. O resultado é uma obra da Sônia vestível. É como se ele tivesse dado à criação dela esse caráter de vestibilidade”.
Veja a artista aqui outra vez:
A consultora de moda acredita que, a exemplo de colaborações entre a Louis Vuitton e brasileiros como Beatriz Milhazes e os irmãos Campana, Sônia tem “um potencial imenso” para criações em parceria com marcas como Comme des Garçons, Prada ou Gucci. Curiosamente, a Fundação Pinault, pertencente à família por trás do grupo Kering, que detém Gucci e Balenciaga, entre outras grifes, negocia no momento a aquisição de uma de suas obras, que entraria para o acervo de seu recém-inaugurado museu, o Bourse de Commerce, em Paris.
A artista afirma, por sua vez, que tudo depende do convite, da proposta. E ressalta: “A moda foi minha primeira expressão artística, algo que se manifestou a partir das roupas desconstruídas que eu refazia e vestia. E eu tinha, como suporte, o meu próprio corpo”. E, do corpo, ganhou o mundo.
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