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Um tributo da jornalista Ruth Aquino, de O Globo, à Valéria Corrêa, a avó que deu permissão para que, depois de um acidente de carro, os órgãos do neto, com morte encefálica, fossem doados, para “salvar outras vidas”.
O gesto de Valéria – “sublime” – tem significado muito especial, como lembra a jornalista, porque não são muitas as famílias brasileiras que autorizam a retirada dos órgãos.
“A Espanha tem mais que o dobro de doadores do Brasil”, lembra ela no texto, atribuindo o baixo número de doações aqui à “desinformação, preconceito e falta de estímulo oficial e federal.”
Um texto pra gente refletir.
Leia:
Querida Valéria. Jamais estamos preparados para a morte, mesmo se for por velhice ou doença incurável. Mas a tragédia brutal, numa rodovia, que matou seu filho, sua nora e cinco de seus netos, vai além dos lutos conhecidos.
Como é possível que você reaja com tanta sensatez e generosidade, a ponto de fazer o que milhões de brasileiros se recusam? Doar os órgãos de seu neto Guilherme, de 13 anos, para “uma parte dele, em algum lugar do mundo, continuar vivendo”.
A Espanha tem mais que o dobro de doadores do Brasil. Lá, são 40 por milhão de habitantes. Aqui, são 15. “A cultura da doação de órgãos é algo a ser incorporado na nossa cultura”, me disse a Dra Margareth Dalcolmo. “Nós, latinos, somos em geral generosos, mas ainda não incluímos esse gesto como algo natural. Deixar escrito, ou a própria família ter essa sensibilidade”.
É um gesto espontâneo que, segundo Dalcolmo, precisa ser ensinado aos filhos, aos netos. Um corpo jovem com morte cerebral, como esse menino saudável, sem doença, pode curar muita gente. A estimativa é de 30 pessoas. São dois rins, duas córneas, dois pulmões, um coração, um fígado, ossos.
Guilherme Lima Corrêa lutou pela vida durante três dias. Até que a morte encefálica foi anunciada na manhã de terça-feira. Sua avó, Valéria Corrêa, de 52 anos, rapidamente tomou, com o avô e o que restou da família, “a decisão mais certa e cabível”: salvar outras vidas, já que seu núcleo próximo havia sido aniquilado por uma carreta desgovernada.
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Essa avó coragem deixa um ensinamento a nós todos. É preciso ter desprendimento em vida. É preciso acreditar que uma morte encefálica, corretamente caracterizada, é irreversível. Confiar na Ciência e saber que Deus não vai ressuscitar aquele ser. Entender que distribuir órgãos de quem já morreu é um ato sublime de amor.
É preciso se informar direito. E compreender que a demora de uma decisão pode ser fatal para pacientes na fila dos transplantes. Temos equipes preparadas tecnicamente, mas o SUS carrega todo o ônus, que deveria ser partilhado com os planos de saúde. O que emperra o processo todo é o custeio, a manutenção e o apoio aos parentes.
Médicos sabem como é delicado o momento de comunicar à família uma morte encefálica e sugerir doação dos órgãos. “É nosso dever”, diz Dalcolmo. “Mais do que convencer os parentes, nós os instruímos. Nós explicamos que os transplantes salvam. Eu tenho, anotado, que meus órgãos devem ser doados”.
O maior motivo para a baixa doação no Brasil é a recusa familiar. Em 2021, 42% dos pacientes com morte cerebral, e que estariam aptos a doar, tiveram o transplante negado pela família.
Não é crueldade brasileira. É desinformação mesmo, uma certa dose de preconceito e falta de estímulo oficial. Se na Espanha o índice de doação é alto, não é porque os espanhóis são mais bonzinhos que nós. O país é referência pela lei de doação presumida. Lá, todo cidadão é um doador potencial, a não ser que deixe orientação contrária em vida. Tipo: “Não quero doar nada”. E mesmo assim, os parentes são consultados. Sempre.
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Nem entrarei aqui nas causas e responsabilidades dessa tragédia, que não pode ser chamada de fatalidade ou acidente. O trânsito no Brasil é assassino por uma série de circunstâncias. Estradas perigosas e mal sinalizadas, veículos precários, velocidades acima do limite, motoristas despreparados, sonolentos, irresponsáveis ou explorados – e às vezes alcoolizados. Um coquetel que dizima famílias.
Valéria, entorpecida pelos funerais, quer conhecer o motorista da carreta. Quer saber por que, ao desviar de uma outra carreta para a direita, acabou dando uma guinada para a esquerda, lançando pelos ares o carro de seu filho Jhonatan, que vinha normalmente pela mão correta.