Márcia Lage
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Durou quase um ano a busca por um técnico em fogões. Nem mesmo o seguro o encontrava. Tive que me abster do pão de queijo, do quibe de berinjela, da lasanha de espinafre, do bolo de banana sem glúten e sem açúcar.
Um fogão sem forno limita em cinquenta por cento a criatividade de um(a) cozinheiro(a). Solicita urgente reparo. Mas, cadê essa gente que conserta coisas nos dias de hoje? Sumiu do mapa, junto com as tele-listas e os cartões de visita.
Cacei-o de boca em boca, como quem caça bicho em extinção. Junto aos porteiros dos prédios, aos gerentes de restaurantes, às donas de casa. Nada. Perguntei nos brechós de móveis usados. Nada. Por fim, um me indicou um bar, onde um técnico bebia de vez em quando. Quem sabe tinham o contato.
Não tinham. Só o primeiro nome e a possibilidade de ele passar por lá qualquer dia. Deixei meu telefone, pedindo que o entregassem ao moço quando ele aparecesse para uma cerveja. Dois dias depois, me liga uma mulher. O técnico não tinha telefone, mas estava interessado no serviço e iria quando eu quisesse.
Marquei para um sábado, a partir das 8h. Ainda estava lavando a louça da noite para preparar o café da manhã quando a campainha tocou. Abri a porta e dei com um septuagenário assobiando feito passarinho, caixa de metal azul na mão.
Entrou sem interromper o assobio, abriu a caixa lotada de ferramentas e escolheu uma minúscula chave de fenda. Com a calma de um cirurgião destampou a cabeça do fogão, regulou todas as trempes e elogiou a limpeza interna do eletrodoméstico, perguntando se eu cozinhava pouco.
Era um jeito sutil de investigar minha vida. Respondi invertendo a tática, explorando com interesse as formas escorregadias que a maioria de nós usa para sobreviver. Água mole transpondo obstáculos, contornando pedras, cavando buracos em montanhas, buscando frestas onde escoar inseguranças. Considero fascinante a história de quem não evapora.
A do técnico em fogões era um rio respeitável, com muitos afluentes. Mãe italiana e pai quilombola, amor nascido na Segunda Guerra Mundial. O ex-combatente ficou com problemas depois da experiência traumática e o filho assumiu o comando da casa, sem poder concluir o ensino básico.
Serviu ao Exército, foi polícia civil, carcereiro, bateu em um preso fugitivo e até hoje estremece de remorso, quando se lembra do caso. Não teve estômago para continuar militar. Pediu baixa. Perdeu soldos.
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Já casado e com filhos para endireitar, fez um curso de reparo de fogões e concluiu com mérito sua missão de sair da pobreza. Os filhos estudaram, mudaram de classe social, são bons cidadãos.
Só o mais rico o preocupa, porque renega as origens abraçando os ideais da extrema-direita. Até acampou em quartéis, o que o deixou muito decepcionado. Mas tentam viver em harmonia, apesar das divergências políticas.
Estiquei a prosa. Com a desculpa de testar o fogão, ofereci um café. Ele aceitou. Chegou à janela da sala e olhou a cidade: Nasci e me criei aqui – enunciou com orgulho. E tenho uma pena danada de saber que vou morrer. O ser humano devia viver 200 anos. Porque só depois dos 60 é que a gente aprende o que tem de aprender. Sem aflição ou violência. Já fui um homem assombrado por medos.
Bebericou calmamente o café sem açúcar, encorajado a se revelar. Contou que teve uma mulher com quem dividiu as lutas, as vitórias e os oito filhos, por 30 felizes anos. Se ela não tivesse morrido fariam bodas de ouro em dezembro. Tentou substituí-la em vários outros relacionamentos, mas amor é um só, dona. Casamento é um só, por toda a vida. Nunca mais encontrei o que perdi.
Colecionou decepções. Buscou a paz. O preço foi um excesso de horas vazias na sua rotina de aposentado. Por isso quer viver mais. Para preencher essas sobras de tempo com alguém que queira compartilhar com ele seus pequenos e últimos prazeres: pescar, viver na roça, criar galinhas, plantar milho. Dançar forró.
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A essa altura percebi que ele me olhava como se eu pudesse ser essa companhia idealizada, o ponteiro que anda para trás e recupera os minutos perdidos num relógio de baterias trocadas.
Paguei correndo e me despedi sem mais delongas. Satisfeita pelo serviço e por constatar que ainda acendo ilusões em corações apagados.
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