Eu tinha oito, nove anos, quando a minha avó Julieta, mãe de meu pai, me ensinou a pegar numa agulha. Meu avô só queria falar de política e os netos, às vezes, se enchiam. Mas a minha avó fazia um gancho com o dedo indicador e convidava: “Vem fazer crochê”. Eu ia.
Eu nem imaginava que esse aprendizado ainda iria me ajudar na vida. Isso veio a acontecer quando, aos 39 anos, fui demitida do cargo de editora-chefe da Ana Maria, publicada pela editora Abril, uma revista popular feminina, a mais vendida neste segmento. Passei oito anos neste cargo. Comandava um grupo de 25 pessoas, ganhava bem, e gostava do que fazia. A alegria acabou quando em 2014, fui demitida. A Abril estava fazendo cortes e minha cabeça foi a primeira a rolar porque eu tinha o maior salário da revista.
Demissão é sempre difícil e, com uma sensação de desamparo, eu olhava para minhas mãos e dizia: “Só sei escrever, fazer jornalismo, não sei fazer mais nada com essas mãos”.
Um ano depois da demissão, me deu um estalo: eu sabia fazer crochê, só precisava treinar. Uma tia me deu algumas aulas e, desde então, nunca mais parei de usar as agulhas. O que me dá um enorme prazer, mas dinheiro quase nenhum.
De tudo, o que mais mais gosto de fazer são sacolinhas. São “lixeiras chiques” para carros. Ninguém entendia, nem eu, por que eu só fazia sacolinhas? Por que não fazer bolsas, biquínis, tapetes? Um dia descobri que elas parecem o escapulário da imagem de Nossa Senhora do Carmo. Então era isso: a sacolinha era a minha versão do escapulário. Achei isso um sinal.
Outro sinal apareceu pouco depois em meu caminho. Explico: quando fui ao hospital visitar uma tia que acabava de sair de uma cirurgia, notei que ela segurava um colarzinho. Ao mesmo tempo fazia meditação e orações.
Aquilo que ela segurava era um terço budista chamado japamala com 108 contas. Ela mesmo tinha feito, lindo. “ um dia você também vai aprender a fazer esses japamalas. Ri. Mas 15 dias depois, pedi uma aula e agora essa se tornou a minha atividade profissional principal, nesse momento de minha vida. É com eles que ganho dinheiro.
Sigo aprendendo e gosto. Agora eu aprendo a escrever com linhas, cordões, agulhas, pedrarias. Faço colares de contas consciente de que eles existem há pelo menos cinco mil anos..Só por existirem há tanto tempo, eu já vejo um baita sentido neste trabalho, que é artesanal e espiritual. Lembra do budismo, do honrar os ancestrais? Tô nessa, honrando passado milenar.
Veja em mais detalhes a entrevista da jornalista Ana Maria Cavalcanti com Lili:
Quando e por que começou a fazer crochê?
Foi em agosto de 2015, exatamente um ano depois de ter sido demitida da Editora Abril. Eu olhava as minhas mãos e dizia “só sei escrever, fazer jornalismo. Não sei fazer mais nada com essas mãos”. Eu já vinha lendo há um tempo sobre o budismo e, nessa “crise das mãos”, resolvi colocar em prática a história budista de honrar ancestrais. Lembrei que quando eu era criança, meu avô só queria falar de política e os netos, às vezes, se enchiam. Mas a minha avó fazia um gancho com o dedo indicador e convidava: “Vem fazer crochê”. Eu ia.
Em 2015, quando decidi voltar a fazer crochê, liguei para uma tia que mora no Guarujá pedindo umas aulas. Ela me deu uma aula e já voltei fazendo crochê no próprio busão Guarujá-São Paulo. Mas nunca ganhei dinheiro com crochê. Quatro anos depois disso, a irmã dessa tia do Guarujá teve um câncer de mama. Acompanhei-a nos exames, cirurgia e tratamento pós-cirúrgico e, logo no início dessa jornada, reparei nas mãos da minha tia um colarzinho, que ela segurava fazendo meditação e orações. Logo soube que era um japamala – o terço hinduísta ou budista, com 108 contas. Ela que tinha feito o artefato, muito lindo, por sinal. Perguntei como usar, e ela disse “você também vai aprender a fazer esses japamalas”. Eu ri. Quinze dias depois, pedi uma aula e agora essa se tornou a minha atividade profissional principal, nesse momento da minha vida.
Enquanto usa as agulhas em que você pensa?
Na beleza dos pontos. Na tração dos dedos. Se apertar demais, o ponto fica estrangulado, se soltar demais, fica mole, tem que ter a tração ideal e mantê-la, um ponto atrás do outro. Para que a carreira de pontos fique uniforme. Eu penso em crochê quando faço crochê.
Diria que o crochê é terapêutico?
Sim, extremamente. Ele mantém a nossa mente no aqui-agora, e isso – nem estar no futuro, nem no passado, mas sim, no presente – baixa a ansiedade, reduz o estresse. Fazer crochê é uma baita meditação.
Qual peça você gosta mais de fazer?
No caso de colares e acessórios com foco em proteção espiritual, eu amo fazer japamalas e terços. No crochê, o que eu mais gosto de fazer são as sacolinhas. Elas têm história. Comecei fazendo essas tais sacolinhas para serem lixeiras chiques em carros. Peguei uma de exemplo em um posto de gasolina e usei as medidas dela para criar a minha lixeira. Deu 33 pontos altos, bem a idade de Cristo. Achei bacana. E segui fazendo só essas sacolinhas. Ninguém entendia, nem eu, o motivo. Por que não fazer bolsas, tapetes, biquínis? Mas eu só fazia as sacolinhas. Um dia, descobri que elas parecem os escapulários da imagem de Nossa Senhora do Carmo. Uma revisita, claro. A minha versão dos escapulários. Achei isso um sinal.
Quais cores te inspiram mais?
Roxo, vermelho e preto. Tenho que me forçar a usar as outras cores. E uma que eu nunca uso é o amarelo. É raro.
Como faz o marketing do negócio?
Um pouco por dia, todos os dias. Sempre posto as peças que produzo em alguma das redes que participo: Instagram, Facebook, Twitter, LinkedIn.
Diria que você está crescendo como artesã?
Sim, estou crescendo. Lenta e gradualmente a clientela aumenta. E, para algumas pessoas, eu dou garantia vitalícia. Se o colar estoura, eu remonto.
Já consegue viver crochetando ou pelo menos paga alguma conta?
Como eu falei, com crochê, nunca ganhei dinheiro. Já com os japamalas e os acessórios com foco em proteção espiritual que passei a criar (terços católicos, gargantilhas, pulseiras), sim. Eles me dão retorno financeiro e a tendência é crescer.
Antes da Ana Maria, onde você trabalhou? Faça um resumo deles e o que fazia.
Antes da AnaMaria, fui editora de comportamento da revista Marie Claire. Antes dela, trabalhei na Caras (editora de São Paulo), na Contigo! (editora-chefe), na Veja.
(repórter) e no Jornal da Tarde (repórter), além das TVs Manchete e SBT de Campinas, entre outros lugares.
Seu pai serviu de inspiração para você?
Sim, e continua servindo, mesmo depois de sua morte. Ele me ensinou (quase) tudo.
Ainda pensa em voltar ao jornalismo? Sente falta da redação?
Pode ser, sinto falta de uma redação, daquelas “das antigas”. Sou da turma que comemorava quando tinha um “furo”. Uma exclusiva. Uma bela entrevista, como essa que você fez comigo.