Márcia Lage
50emais
A escritora brasiliense Conceição Freitas está no Rio de Janeiro desde a festa de Yemanjá, em 02 de fevereiro.
Nascida no Amazonas, ela tem dentro de si a força ancestral dos festejos populares.
Espera o Carnaval chegar para entrar na folia com a disposição de uma alegre vingança.
Chico Buarque traduziu esse sentimento brasileiro de posse do direito à existência, à distração, ao sonho e à fantasia como um revide sociocultural:
“E quem me vê apanhando da vida duvida que eu vá revidar. Tô me guardando pra quando o Carnaval chegar”.
A grande vingança em forma de festa, homenagens, alegorias e desfiles em blocos e escolas de samba lembra o trabalho paciente do escravo Chico Rei, que introduziu o Congado em Minas Gerais, depois de comprar a alforria de todo seu povo.
Para celebrar o feito, vestiu de rainha sua mulher, de princesas e príncipes os seus filhos, auto-coroou-se rei, trajou sua gente de roupas típicas e fitas na cabeça, chocalhos nos pés, tambores nas mãos, dançado a dança tribal ladeira abaixo, ladeira acima.
A nobreza viu da janela o recado do ex-escravo: não se escraviza Liberdade e tradição.
Carnaval não é congado nem foi inventado por brasileiros. Era baile de máscara de europeus, que a população tratou de apimentar, ironizar, rebolar, percussionar, até transformá-lo na maior festa popular do mundo.
É da inclusão que o carnaval se nutre. Aglutina brancos e o pretos, pobres, ricos, remediados; velhos, jovens, crianças; homens e mulheres (sem vagões separatistas, como nos trens e metrôs), gays, lésbicas, simpatizantes e todas as demais denominações da bandeira-arco-iris, sambando, cantando, gritando; sou povo, sou isso tudo. Me veja da janela quem não me tolera.
“Amo o Carnaval desde criança” – conta a escritora brasiliense. “Meu pai amava, meu irmão amava, minha mãe amava.”
Mas, com o passar do tempo, vou ficando um pouco constrangida, porque não encontro mais companhia da mesma idade, não em Brasília.
E tenho percebido olhares estranhos, em geral de homens, como se uma roda de samba, um bloco de Carnaval, não fosse lugar de mulher mais velha. Mas nem te ligo, vou ser feliz mais uma vez”
As velhas guardas das escolas de samba, reverenciadas à frente dos desfiles no Sambódromo, mostram que o Carnaval não tem idade.
São os velhos que sustentam essa tradição, passando para os filhos e netos o gosto pela festa.
Como fizeram os pais da Conceição Freitas e de outra Conceição, a Vieira, jornalista aposentada que saiu do Rio e foi para Diamantina, curtir a festa à moda mineira: mais blocos do que escolas de samba. Nem por isso menos animada.
“No Carnaval eu boto minha Criança pro lado de fora, sem Pai nem Adulto nenhum pra embaçar. Ela, que vive presa e reprimida ano inteiro, se esbalda, então, sem vergonha e sem trava nenhuma. E que se danem os Pais e os Adultos que nem nesse tempo se permitem descansar”, diz a jornalista.
O nome e a idade das duas é um recorte típico do público que brinca o Carnaval. Em Recife e São Paulo, por exemplo, já existem alas só de pessoas portadoras de deficiência.
É ou não é a festa mais inclusiva e democrática que existe? Quem dera fosse assim o ano todo!
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