Márcia Lage
50emais
Todas as angústias das mulheres (e talvez outras, de homens) habitam o corpo dela: o desejo de amar e de ser amada, o sonho da casa própria, arrumadinha e com bons móveis, a vontade de ser bonita, sexy, deslumbrante.
Numa sexta feira, chega de cabelos vermelhos: estou lavando com casca de cebola roxa. Para manter a cor e dar brilho. Ficou maravilhoso, não ficou? Na outra semana muda para preto: fiquei mais velha ou mais nova? Quinze dias depois, loira com mechas e um corte desfiado: Fui no salão. Gastei uma grana. Mas merecia um corte profissional, depois de tanta meleca que fiz em casa.
Peleja para fixar na cara a imagem que deseja de si. Fêmea poderosa, com homens ricos a brigar por ela.
– Ah, como queria um bofe pra cuidar de mim. Me encher de jóias e de roupas chiques, me levar para jantar em restaurantes caros, não aquele traste que tenho em casa, que se não fosse eu a me matar de trabalhar tava mesmo é passando fome.
O homem, que ela só chama de amor, largou mulher, filhos e netos para ficar com ela.
– Deu muito bafafá, mas agora já conquistei todo mundo. Só o irmão dele que não me aceita, informa com indiferença.
Pedreiro de cara amarrada, o companheiro não consegue emprego. Ela mesma o contratou para construírem a casa própria.
Compra sozinha o material e, nos fins de semana, pega no batente para fazer a obra andar e consertar o que ele errou.
Termina a casa, planta jardins, cria cachorros, faz horta, faz festa para a família dele, com churrasco e cerveja. Quase feliz. Então, ele arruma outra.
– Mulher de verdade, com mais dinheiro para bancá-lo, revolta-se. Um gigolô, é isso que ele é. Mas vai voltar pra mim, vou descobrir quem é ela e contar que ele era casado comigo, uma travesti. Veado, é isso que ele é, iludindo a boba!
O cunhado que não a aceitava, ameaça tomar a casa. A não ser que ela vire amante dele.
– Estou pasma. O cara que me xingava, me desprezava, cheio de preconceito, agora quer ficar comigo. Quanto mais machista mais gays eles são, amiga!
Toda sexta-feira é esse desespero. Toda sexta feira, escuto. Tenho vontade de dispensar a faxina. Arrumar alguém mais focado, mais calado, que não deixa fora do lugar os frascos de material de limpeza, os panos molhados, saindo na galopeira para resolver questões de gênero, que eu nem chego perto de entender.
Não tenho coragem. Ela aparece quase sempre aos prantos:
– Amiga, perdi meu celular; amiga, meu gás acabou; amiga, minha Internet foi cortada. Um barco sem leme, a vida vivida no desespero de um afogamento.
Usa saia curtíssima, saltos altos, mini-blusa de alcinha. Trabalha assim, os bagos ocultos no short de malha apertada, tentando seduzir os homens da obra ao lado.
Ela mesma homem, se revelando na barriga musculosa, na batata da perna, no bíceps que salta.
Toda sexta levanta a blusa para exibir no peitoral uns peitinhos de nada, à força de hormônios comprados sem receita.
– Meu sonho é ter um peitão deste tamanho! Vou por silicone. Achei uma médica que faz a operação por quatro mil reais.
Até ontem não queria cortar o pênis. Garante que há hordas de homens que têm fetiche por travestis. A freguesia é farta e o preço alto. Dá muito mais dinheiro que ser transgênero, afirma.
De repente, decidiu mudar de sexo. Descobriu que o SUS opera.
– De graça, nem preciso juntar dinheiro para o silicone. Vou virar uma mulher linda, ai quero ver se não arranjo um homem de verdade.
Perco a paciência: Querida, há quase um século lutamos contra o machismo, contra o poder masculino sobre nós.
Transsexuais e transgêneros não podem por tudo a perder. Não seja submissa, não ache que é amor ser abusada. Respeite-se! Imponha-se!
Ela me encara como um cão de rua, os olhos arregalados, entre compreensão e impossibilidade. Já pôs tudo a perder quando apareceu com marcas de chicotadas, manchas roxas, o ego destroçado. Fará qualquer sacrifício por uma gota que seja de aceitação.