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Está chegando ao Rio, em agosto, uma das peças mais faladas dos últimos tempos: A Última Entrevista, na qual contracenam no palco Marília Gabriela e o filho mais novo, Theodoro Cochraine.
Sucesso absoluto em São Paulo, onde estreou com casa cheia, Teatro Unimed, e permaneceu assim ao longo de toda a temporada, a peça trata de feminismo, conflito de gerações, homofobia, e aborda, de maneira, às vezes brutal, o relacionamento entre mãe e filho,
— Sofri muito nos ensaios. Mais do que minha mãe, que psicologizava o texto e me irritava ao se fazer de coitadinha. Era meio “ah, sou tão velhinha, sou tão boazinha, superei tudo, te perdoo” — conta ele neste artigo de Eduardo Graça para O Globo.
Mas ela rebate:
— Isso, claro, é impressão dele. Minha vida é uma trajetória de culpas. De exercer o direito de viver como bem entendi desde jovem. De ser a jornalista que viajava e entrevistava incansavelmente, bancava a casa enquanto o marido cuidava dos filhos. Culpa é palavra organicamente feminina e só agora, mais velha, perdi vergonha dela.
Leia:
No jogo de espelhos pensado pela dramaturga Michelle Ferreira e o diretor Bruno Guida, mãe e filho se misturam num divertido e doloroso vaivém até o epílogo da peça. No caminho, refletem sobre viver sob a proteção e a sombra de um ícone pop, encaram o abandono e a solidão, se amam profundamente mesmo quando não suportam a presença do outro, e sentem muita, mas muita culpa.
E sim, também falam de Reynaldo Gianecchini e de Madonna. Durante 1h15 min, Marília e Theo discutem a relação real dos dois e a forjada bem ali na frente dos espectadores, de forma despudorada. E corajosa.
Sucesso em São Paulo, com casa cheia desde a estreia, em maio, “A última entrevista de Marília Gabriela” viaja agora para o Rio — onde ficará de 9 a 25 de agosto, no Teatro Prio, no Jóquei da Gávea, com sessões sextas e sábados, às 20h, e domingos às 19h. Depois retorna para nova temporada no Unimed, até outubro.
A ideia do espetáculo surgiu há dois anos, quando Theo dirigiu sua mãe nos programas “Gabi de frente de novo”, no YouTube. Além de ficar cara a cara com influencers, entre eles Juliette e Hugo Gloss, a jornalista o entrevistou, no derradeiro episódio. Nele, discutiram a invisibilidade do profissional para sempre apresentado como “o filho da Marília Gabriela”. Foi recorde de audiência.
A produtora Renata Alvim convocou então Michelle Ferreira, que escreveu a peça a partir de, claro, entrevistas, com mãe e filho. O diretor Bruno Guida incorporou aos ensaios um cartão vermelho para quando os protagonistas não quisessem responder determinada questão. Jamais usado, é usado quando Theodoro seleciona, de forma aleatória, perguntas da plateia a Marília, escritas antes de o espetáculo começar.
— Sofri muito nos ensaios. Mais do que minha mãe, que psicologizava o texto e me irritava ao se fazer de coitadinha. Era meio “ah, sou tão velhinha, sou tão boazinha, superei tudo, te perdoo” — diz ele.
Mas Marília o interrompe:
— Isso, claro, é impressão dele. Minha vida é uma trajetória de culpas. De exercer o direito de viver como bem entendi desde jovem. De ser a jornalista que viajava e entrevistava incansavelmente, bancava a casa enquanto o marido cuidava dos filhos. Culpa é palavra organicamente feminina e só agora, mais velha, perdi vergonha dela. Mas a peça me faz lembrar de tudo, e, quando choro, é de verdade. Brigar com meu filho em cena é… olha como fico (olhos marejados) só de pensar.
No palco e na entrevista por videochamada ao GLOBO, um completa a frase do outro, às vezes sem nem perceberem, em bate-bola menos cronometrado do que o consagrado nos programas comandados pela talk show woman.
Privilégios
De volta a Theo:
— Teve um momento que fiquei com bode do personagem, de mim mesmo, eram “problemas de pessoas brancas” demais, o privilégio do privilégio do privilégio. Até que fui para um caminho mais arquetípico, como o Bruno (Guida) sugerira. Era eu com aqueles oclões dela, ela com um bigode postiço. Mas também éramos um filho e uma mãe. Quando chegou a plateia, vi que ele estava certo.
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Em um dos momentos mais fortes, em que remexe as memórias para lembrar como a mãe famosa (não) reagiu ao bullying que sofria na escola, o ator exige, na troca de papéis, que ela de fato encarne “a criança triste” que ele foi. Marília não consegue. E o filho a deixa só no palco.
— Na vida real, não saí da relação, jamais rompemos. E o que mais me incomodava não era o preconceito, mas ser “o filho da Marília Gabriela”, o “ator fracassado”, o “DJ medíocre”, a gigantesca árvore dela, o sarrafo alto demais — diz ele.
A peça é, também, uma tentativa de Gabi fazer justiça a Theo. Os dois têm plena consciência de que a maioria do público sai de casa interessada em ver os confrontos entre Marília Gabriela e “seu filho”. Em cena, ele diz de cabeça erguida: “vão dizer, claro, lá vai ele explorar a mãe de novo, com a última entrevista”. Que digam. Um dos acertos da peça é se apropriar do fetiche e subverter a isca, em um convite ao público para se identificar com questões que ultrapassam as especificidades de uma vida célebre.
— Eles encontram na crueza e na violência do amor dos dois algo muito honesto, além do clichê da mãe narcisista e do filho coitado. O amor, mesmo, é puro e violento. E se não escancarássemos isso na peça, não estaríamos falando de amor — diz Michelle.
Theodoro Cochrane odeia fazer uma única parte de “A última entrevista de Marília Gabriela”. É a que trata da invenção de que o casamento de sua mãe com o ator Reynaldo Giannechini era de fachada e, geralmente abordado em seguida no palco, ele questiona a capacidade profissional da jornalista por sua fatídica entrevista com Madonna.
— É um saco fazer, mas são momentos em que as pessoas enlouquecem. E a ideia é que eu seja, ali, especialmente cruel — conta.
Ele é. E funciona. Os temas surgem quando o ator sorteia perguntas escritas pelo público para a última entrevista de Gabi imediatamente antes de o espetáculo começar. É batata. Elas sempre estão no globo de onde ele retira as questões.
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Sobre Giannechini, a mentira dava conta de que Theo era modelo em Paris, dependente químico, e que teria sido salvo pelo ator com quem acabaria tendo um caso secreto. No palco, Gabi responde que estava muito ocupada à época sendo feliz com o futuro galã da Globo para se abalar com maledicências. Na plateia, olhos arregalados, ouvidos limpos e nenhum pio.
Veja um pouco dos dois:
Já especialmente a cutucada na mãe por sua entrevista, em 1998, em Nova York, com Madonna, para o “De frente com Gabi”, programa que a jornalista comandava no SBT, é especialmente venenosa. Um hit no YouTube, o embate ainda é doído de se ver. A entrevistadora luta, incansável, mas em vão, para arrancar algo consistente de uma rainha do pop monossilábica e visivelmente desinteressada. Fãs da diva chiaram à época com o que diagnosticaram ser falta de preparo da brasileira.
— Ali é onde mais me afasto de quem sou. Não concordo com nada do que é dito no palco. Era fã número um da Madonna e quando minha mãe a entrevistou foi a realização de um sonho meu de adolescente. Mas quando vi, passei a odiá-la. Foi de um estrelismo, de uma falta de educação. Quando a vejo, vem na minha cabeça “filha da puta”, pois tratou minha mãe mal — diz Theo.
Curiosamente, a peça estreou em São Paulo no fim de semana em que Madonna se apresentou de graça, aos 65 anos, na Praia de Copacabana, no Rio, para o maior público de sua carreira. Naturalmente, Gabi não viu o show pela TV.
— Mas também não vejo mais nada, só leio muito e viro as noites maratonando séries. Madonna foi muito cruel comigo. Lembro que saí do restaurante e sentia que andava por Manhattan carregando uma bola de ferro, dessas de prisão — conta.
A jornalista lembra como se fosse hoje da entourage que acompanhava Madonna. E que a cada pergunta feita ela olhava para a claque, de forma debochada.
— Tenho a impressão que, com o tempo, ela deve ter melhorado. Essa simpatia toda que mostrou no Rio, deve ter a ver com a idade. Virou uma senhora, né? E também com a crueldade da profissão. Todo mundo que bota a cara assim, precisa encarar que uma hora será substituída. A vida é assim. E ponto – diz Gabi.
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Envelhecimento e fim também são protagonistas de “A última entrevista de Marília Gabriela”. A jornalista repete a frase “envelhecer é uma merda” tanto quanto, justiça seja feita, “eu quero me divertir”. E faz o espetáculo com o texto na mão (“Já não consigo decorar mais nada”), assim como Theo (“Ponha a culpa na Covid”). Mas, de modo inteligente, a encenação se apropria do que poderia ser uma bengala para valorizar a emissão vocal dos atores, que cantam juntos no fim.