Márcia Lage
50emais
Comprei um carro elétrico. Não para ter mobilidade urbana – que essa eu resolvo com um par de tênis – mas para ganhar mobilidade rural.
Cansei de viajar de ônibus ruins, com passagens caras e pontualidade instável, que ainda tentam abarcar, numa viagem só, todas as cidades existentes na rota.
Não é àtoa que o Buser vem acabando com essas empresas, sentadas no atraso e no desrespeito ao usuário por concessões perenes.
Voltemos ao carro elétrico. O que me atraiu nele foi a questão ambiental. Não quero ser responsável por rasgar a camada de ozônio com mais gás carbónico, nessa altura da crise climática.
Também não quero ficar refém das guerras pelo petróleo, que comandam os preços dos combustíveis fósseis.
Além de eles não serem renováveis nem limpos como a energia elétrica. Pelo menos a nossa, de geração majoritariamente hidráulica.
Aliás, um dos grandes erros dos carros elétricos brasileiros é não ter usado (pelo menos até agora) nossa maior, constante e gratuita fonte de energia, que é o sol.
As baterias deveriam ser carregadas por placas solares instaladas nos capôs, ao invés de dependerem da eletricidade para se reabastecerem.
Os postos de combustíveis das estradas brasileiras ainda não se deram conta da demanda crescente pelos elétricos e a maioria não oferece opção de recarga.
Então, um carro elétrico ainda é para as cidades, como aconteceu com os celulares no início de sua chegada ao país, nos anos 1980.
Mas eu quis o carro para andar no mato, da mesma forma que morava no mato quando tive o primeiro celular.
O consumidor tem que saber impor sua demanda à indústria, senão ela inverte suas necessidades e os confina nos grandes centros urbanos, para obter lucro rápido e fácil.
Como sou do contra, comprei um Jac e o coloquei na estrada. Confiante de que ele me entregaria pelo menos 250km dos 300km prometidos.
A vendedora havia me alertado que, nas estradas, ele rende menos, porque há menos frenagens, que ajudam a recarregar a bateria. Escolhi um percurso de 180 km, de Caxambu, MG, a Conservatória, RJ.
Que delícia de carro. Silencioso e ágil feito uma borboleta. Responde muito bem nas ultrapassagens, embora só chegue a 120 km por hora.
O que para mim é perfeito, pois gosto de andar na lei e essa é a velocidade máxima nas estradas.
O problema é que o Jac é um alto consumidor de energia. Eu só via a carga caindo e comecei a ficar preocupada.
Havia estudado o percurso antes e consultado o aplicativo PlugShare, que informa sobre todas as estações de recarga no caminho. E não havia nenhuma.
Pelos meus cálculos eu chegaria a Conservatória com 40 por cento de carga, o que daria para seguir até Barra do Pirai e recarregar. Lá havia uma estação, segundo o aplicativo.
Mas não deu. Faltando 10 km ainda eu só tinha 20 por cento de carga. Sorte que a estrada era estreita e cheia de curvas e tive que frear bastante, o que contribuiu para manter o percentual da energia.
Cheguei na fazenda onde ia me hospedar com 19 por cento. O painel avisava que eu poderia andar mais 58km, mas não quis arriscar a ir até Barra do Pirai para recarregar.
O consumo real desmentia a autonomia anunciada.
Então relaxei e, no dia seguinte, contratei um eletricista para instalar uma tomada de 220 volts na casa.
Existe essa opção doméstica de carregamento, que dura 15 horas.
Como eu não ia a lugar algum até minha próxima viagem, deixei o carro na tomada e fui trabalhar no projeto de reflorestamento que toco na fazenda.
Deu tudo certo. Com a bateria completa, pude dar uma volta na cidade e assistir a um festival de Jazz.
Foi quando descobri que um hotel local já tem uma estação de carregamento, que ainda não está registrada no PlugShare.
Vou usá-la antes de seguir para o próximo destino, porque a carga é muito mais rápida.
Em resumo, estou contente. Embora não tenha uma placa solar (o que eu acredito que seja o próximo passo dos carros elétricos nacionais), vi que posso viajar com o Jac.
É só planejar bem o trajeto, consultar o PlugShare e ter uma tomada de 220 volts de reserva.
Se não houver uma na casa onde se vai ficar, o serviço de um eletricista não passa muito de 100 reais. É bem mais em conta que um tanque de gasolina.
Quanto ao mais, o carro elétrico é perfeito para os aposentados.
Custa igual a um carro automático básico, consome menos de 30 reais em cada carga (a maioria é de graça) e ainda tem isenção de IPVA por cinco anos em muitos Estados.
Finalmente encontrei um carro à altura do meu salário de aposentada. Nunca mais pego um ônibus desengonçado para andar pelo interior do Brasil, pagando caro e recebendo pouco.
Só troco o meu Jac por trens elétricos de alta velocidade e ônibus elétricos silenciosos, confortáveis e não poluentes, que espero poder alcançar antes que eu me canse de dirigir e de viajar sozinha.
O povo brasileiro merece mobilidade digna. E se isso é possível para uns, tem que ser possível para todos
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