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O que mais chama a atenção nesta entrevista com a escritora Vivian Gornick é a reclamação dela: lamenta ter ficado rica somente agora, aos 88 anos.
De origem humilde, a aclamada escritora novaiorquina se encontra numa situação inusitada: pela primeira vez na vida tem muito dinheiro, mas não sabe onde ou como gastar.
O enriquecimento chegou quando foi redescoberta pelas mulheres que participaram do #MeToo, o movimento que nasceu nos Estados Unidos contra o assédio sexual e se internacionalizou.
Leia mais detalhes neste artigo de Eduardo Graça para o Globo:
Os imensos olhos azuis de Vivian Gornick se fecham por completo na conversa com O GLOBO duas vezes. A primeira se dá quando a escritora e jornalista de 88 anos, patrimônio literário de Nova York, sorri, da poltrona de seu apartamento, ao pensar na peculiaridade de ser redescoberta após mais de oito décadas de vida, “por causa das mulheres do #MeToo”.
“Afetos ferozes”, publicado nos EUA em 1987 e reeditado no Brasil há cinco anos, foi eleito pelo New York Times “o melhor livro de memórias em língua inglesa dos últimos 50 anos”. Sua sequência informal, “Uma mulher singular”, de 2015, acaba de sair no Brasil.
O que fazer com o dinheiro?
E em abril a feminista histórica recebeu, pelo conjunto de sua obra, o prestigioso prêmio Hadada, da Paris Review — distinção concedida anteriormente a nomes como Joan Didion, Philip Roth, Jamaica Kincaid e Lydia Davis.
— Eu preciso te contar: mais do que as reedições e todo este fuzuê, o que me tira mesmo do sério é ter, a esta altura da vida, ficado rica. Como sempre vivi na falta dele, não sei o que fazer com dinheiro. É muito tarde, aos 88 anos, pra mudar meu estilo de vida, mas já pego táxi quando chove e não preciso mais escolher o prato mais barato do cardápio. Pequenas liberdades nas coisas que podem fazer a vida parecer mesquinha. É um bom começo? — pergunta.
É, sim. Vivian cresceu pobre, do lado de lá do Rio Harlem, em projeto habitacional no Bronx que no período entre guerras tinha como moradores, em sua maioria, imigrantes judeus. Seus pais, de origem ucraniana, eram operários marxistas. Vem daí, arrisca, a urgência de sua escrita.
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As argamassas da celebrada obra memorialística são frases curtas, muxoxos aparentemente sem sentido e imagens nítidas do universo que é Nova York.
Suas histórias brotam do tédio enquanto a luz teima em não mudar de cor num sinal de trânsito do Upper East Side. Ou da discussão entre o passageiro muito branco e o motorista pretíssimo sobre se o primeiro pagou de fato a passagem do ônibus que atravessa a ilha de leste a oeste. Não pagou.
Cenas transformadas, em meio a referências de alta cultura, sociologia, psicanálise e feminismo, em algo que Vivian “precisa te contar”.
Continentes metafóricos
Em tarde de quase verão com céu azul, a cidade invade impiedosamente o ambiente da entrevista no berro de um caminhão de bombeiros em disparada pela Sétima Avenida.
— Não há de ser nada — vaticina Vivian, com o dar de ombros de quem ocupa, há 40 anos, o mesmo quarto e sala subsidiado pela prefeitura, na fronteira do West com o Greenwich Village. Na sala, a mobília é austera, com destaque para o sofá de três lugares, a estante com cerca de mil livros, e a escrivaninha dublê de mesa de jantar, testemunha táctil, ao lado de dois gatos, da labuta da dona. Que não para.
— Estou às voltas com novo livro, em torno das lembranças do City College, minha alma mater. Quando, primeira universitária da família, pegava o metrô do Bronx para Manhattan, atravessava continentes metafóricos. Quero enfatizar o poder transformador da Educação gratuita, em tempos de universidades caras, protagonistas da elitização cancerosa dos EUA. E de quebra, claro, estou fazendo um exercício brutal de saúde mental na velhice — diz, emendando em nova pergunta. — No Brasil, há educação superior pública de qualidade?
Uma mulher singular
Sim, há. Alterar a ordem acordada da entrevista é quase um cacoete para a repórter que, na encarnação mais dourada do semanário Village Voice, educou, nos anos 1970, leitores dos quatro cantos do planeta sobre o feminismo. E o fez de dentro da trincheira, “abusadamente classe média e anarquista”.
Em um dos trechos mais vivos de “Uma mulher singular”, Vivian, duas vezes divorciada, um aborto, resgata, de uma improvável cadeira numa releitura do musical “Gypsy”, na Broadway, sua reação quando lhe questionavam sobre o “destempero enfurecido” das feministas radicais: “Hoje percebo que não queríamos reformas ou reparações, mas destruir mesmo o sistema, o arranjo social, fossem quais fossem as consequências. Quando nos perguntavam repetidamente: e as crianças? E a família? Grunhíamos ou rugíamos de volta: fodam-se as crianças! Foda-se a família! O que viria depois não nos dizia respeito”.
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Dizia, claro. Seu cultuado “Afetos ferozes” é, em uma primeira leitura, o relato de conversas entre mãe e filha em caminhadas feitas por Nova York durante três anos. Há brigas, cutucadas, alguma empatia, e, essencialmente, olhares divergentes igualmente atentos ao feminino. Ao feminismo. A descoberta do livro pela geração #MeToo levou levas de leitores às críticas literárias e aos ensaios de Vivian. E virou a vida da octogenária de cabeça pra baixo:
—É inacreditável. Desde 2017, meus livros passaram a ser traduzidos, um atrás do outro, e multiplicaram-se as leitoras mundo afora. As latino-americanas me questionam sobre temas que discutíamos nos EUA há 40 anos e chegam com perguntas dos maridos. Eles ainda querem saber se não é irreconciliável independência profissional e financeira com a criação dos filhos. Tenha paciência.
Risco para o erotismo
Impaciência foi o que a hoje professora universitária aposentada imediatamente detectou e celebrou na atual geração de feministas. A raiva “mais do que compreensível”, diz, desmascarou abusadores, destruiu reputações construídas a partir de fantasias narcísicas e sim, aponta, “também puniu possíveis inocentes”.
—Vejo o #MeToo como consequência ao mesmo tempo bem-vinda e triste do feminismo revolucionário da minha geração. Saúdo a passagem de bastão, mas acreditávamos que tudo o que fizemos as poupariam. Elas nos mostraram que não. E atestaram que as mudanças sociais têm um ritmo muito mais lento do que imaginávamos — diz.
O tempo verbal nesta reposta é refém de fato triste: o parceiro das frases lapidares do livro morreu em 2020, de causas naturais. Leonard, identificado apenas pelo primeiro nome, é quem abre e fecha “Uma mulher singular”. E Vivian, camisa de malha preta e legging cinza, pernas cruzadas na poltrona como se tivesse pelo menos um par de décadas a menos, revela ser ela hoje a sofrer de doença crônica e incurável: uma saudade imensa.
A cidade segue fonte de oxigênio, mas também a preenche com doses quase idênticas de melancolia. Afetada desproporcionalmente, Nova York mudou muito durante a pandemia de Covid-19. E de forma irreversível, crê sua cronista. O aroma de maconha em todo canto, traduzido sem vacilo por uma das mais importantes intelectuais americanas como “perfume de menos opressão a cidadãos negros e latinos”, não esfumaça a multiplicação de pessoas vivendo em situação de rua na capital informal do planeta. Igualmente, pontua, negras e latinas em sua maioria.
— Algo se quebrou. Mas Nova York é… bem… Nova York. Até morrer, eu a amarei incondicionalmente, assim como seus habitantes — diz.
É quando Vivian fecha os olhos azuis pela segunda vez. E convida o repórter a ouvir conversas soltas, a imaginar gestos, a sentir a companhia que vem do desconhecido, a preferir estar com “eles” do que com qualquer outra pessoa. É assim que ela termina “Uma mulher singular”. Ou quase. Falta Leonard para “continuar a conversa ao alcance de uma ligação”.
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