Márcia Lage
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Escuto a correria dele pela casa desde a hora que acorda até a hora em que se deita. Como se não tivesse tempo a perder na fascinante vida que se abre para ele, como uma caixa de lápis de cor.
Certa manhã, me chamou na cerca verde que separa nossas casas: “- Vizinha, vem aqui. Tenho uma surpresa para você”! Corri para ele, semi-oculto entre trepadeiras e bananeiras, mãozinhas para trás, os olhos verdes risonhos, apertados sob espessos cílios, todo anjo o menino de quatro anos.
– Fecha os olhos – ordenou com a cara sapeca de criança feliz. Fechei. Ele depositou em minhas mãos um saquinho transparente com alguns cookies de aveia e chocolate dentro, amarrados com um laço de fita rosa.
– Eu qué fiz – anunciou cheio de orgulho.
A mãe acompanhava tudo de longe e disse que havia feito os cookies com ele, numa imersão dos dois na culinária. E que ele, quando viu os biscoitos assados, pediu: “Vamos dar um pouco para a vizinha”?
Somos amigos, eu diria. Uma amizade que renova em mim a curiosidade pela vida, enfraquecida pela sensação de déja-vu que os muitos anos de existência acumulam. Com a idade, tudo se torna repetitivo e chato, quando não cansativo e desanimador.
Tenho amigos que já não viajam, não vão mais a praias nem a restaurantes, não tomam sorvete por causa do açúcar, do leite e da manteiga, enrolam cachecol no pescoço para se proteger de brisas, se lambuzam de bloqueador solar e se camuflam com óculos, chapéus e mascaras, neuróticos com a saúde e apavorados com a morte.
O pequeno José ainda não sabe de nada disso e torço para que nunca se desencante com o viver, que nunca deixe de fazer perguntas e que seus olhos de esmeralda permaneçam fascinados com as coisas que vê: formigas, flores, borboletas, sapos, tudo é motivo de alegria para o meu vizinho falante e corredor.
Dias destes eu o convidei para comer amoras no meu jardim. A alegria dele inundou o quintal, a casa, a rua, o bairro, minha alma acabrunhada de tanta desilusão. Ele fez planos de fazer geleia (gosta de cozinhar, o guri) e alimentou uma solitária carpa, que nada devagar no lago junto à amoreira, só para ver um pouco mais da beleza do mundo.
Quando estou na rua e ele passa por mim, grita do carro: “Bom dia, vizinha”! Isso basta para afugentar pensamentos tenebrosos e medos horríveis que me perseguem por chegar à velhice sem ter mudado uma unha neste país que nunca tem futuro.
Vejo a carinha inocente dele e sinto saudades dos meus sobrinhos-netos, da mesma idade e com o mesmo encantamento de viver. Tenho fé que essa geração de crianças amadas crescerá segura e forte e mudará o mundo. A mim, já mudam, só por existirem.
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