Fernanda Montenegro, 92, é um grande símbolo da cultura brasileira. E é como tal que foi escolhida nesta quinta-feira(04) para ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, cuja sede fica no Rio de Janeiro. Muita gente estranhou quando a grande atriz foi lançada como candidata a uma vaga na ABL, porque acreditava que a instituição permitia o ingresso somente de escritores. Quando foi fundada, segundo esta reportagem de O Globo, os primeiros membros da Academia se dividiram entre aqueles que defendiam a entrada apenas de escritores e aqueles que prefeririam seguir os critérios da Academia Francesa, aberta também a grandes nomes da ciência, da cultura, da igreja, da política e das Forças Armadas. A escolha de Fernanda foi aplaudida por todos os setores.
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A nova ocupante da cadeira nº 17 da Academia Brasileira de Letras dispensa apresentações. Vencedora dos mais importantes prêmios nacionais e internacionais, vencedora no Festival de Berlim e única atriz brasileira indicada ao Oscar (por “Central do Brasil”), Fernanda Montenegro foi eleita na tarde desta quinta-feira (4), com 32 votos (mais duas abstenções e um nulo), em cerimônia no Petit Trianon.
A votação acabou sendo uma mera formalidade, já que a Grande Dama do Teatro era a única candidata para a vaga — ninguém ousou enfrentá-la. Aos 92 anos de idade e 76 de profissão, ela assume o assento que tem como patrono Hipólito da Costa e que teve como último ocupante o diplomata e escritor Affonso Arinos de Mello Franco, morto em março de 2020.
— Lembro que cruzei com Affonso Arinos algumas vezes, uma figura referecial. Ele me parava e dizia: “Fernanda, escreva um livro e entre na Academia” — diz a nova imortal, em entrevista ao GLOBO. — Eu respondia: “Mas eu? Eu sou só uma atriz!” Agora veja esse milagre: a Academia me aceita e ele me antecede. Vai explicar um fenômeno desses.
Aguardada desde agosto, quando a atriz oficializou sua candidatura, a eleição colocou a ABL no centro dos holofotes. A figura de Fernanda ultrapassa o mundo da literatura, é conhecida e admirada por um público amplo, do olimpo teatral à cultura de massas das telenovelas. Não há dúvidas de que a instituição cujo próprio fundador Machado de Assis um dia chamou de “torre de marfim” se tornou um tantinho mais pop com a presença luminosa da artista.
E deverá ficar ainda mais no próximo dia 11, com o provável ingresso de outro ícone da cultura popular entre o quadro de imortais. Gilberto Gil é favoritíssimo à cadeira nº 12, a qual disputa com o poeta Salgado Maranhão. Como ministro da cultura entre 2003 e 2008, o cantor e compositor trouxe seu star power para o cargo e atraiu para pasta uma atenção maior do que a usual — quer campanha internacional melhor do que Gil cantando “Toda menina baiana” na ONU?
— Acho que tanto o Gil como a Fernanda serão capazes de dar à Academia a visibilidade que ela merece, e que andou diminuindo com o tempo — diz o escritor e acadêmico Paulo Coelho, outra figura pop da casa. — Não é só uma questão de visibilidade, mas de competência. Ambos são expoentes em suas áreas, com um longo trabalho, baseado em coerencia e qualidade.
Paulo Coelho: ingresso de Fernanda e Gil é ‘sopro de vida’
Coelho é o autor brasileiro mais vendido no planeta, com 210 milhões de exemplares, e traduzido para mais de 70 línguas em 150 países. Sua eleição em 2012, porém, foi muito mais contestada do que a de Fernanda, inclusive dentro da própria academia — o “mago” venceu o sociólogo Hélio Jaguaribe por 22 votos a 15. Sinal de que os tempos mudaram? Em todo caso, o ocupante da cadeira nº 21 acredita que essa abertura da casa para a cultura popular acontece em boa hora.
— Em um momento em que a cultura vem sendo atacada, ignorada por um governo que não faz nada além de tentar diminuir sua importância, é um sopro de vida ver Gil e Fernanda tendo mais uma vez o reconhecimento merecido.
Amigo próximo dos acadêmicos e conhecedor dos bastidores da casa, o editor José Mario Pereira, da Topbooks, vê a chegada de Fernanda como um “gol de placa” da ABL.
— Vai reforçar o status cultural da casa e ampliar o interesse do público leigo pela casa — diz Pereira.
Para o acadêmico Merval Pereira, um dos objetivos da ABL é a preservação da cultura do país.
— Fernanda Montenegro é um ícone da cultura brasileira — ressalta.
De letras, mas não só
Para os acadêmicos, a busca por nomes como os de Fernanda Montenegro e Gilberto Gil se dá pelo valor simbólico deles em suas respectivas áreas. E o fato de uma ser atriz e o outro compositor não representa uma ruptura com o histórico da casa — afinal, o estatuto deixa claro que reserva vagas para personalidades de prestígio em suas áreas, não somente na literatura.
Além de Gil, entre os principais favoritos para as outras vagas disponíveis, vale lembrar, estão um médico (Paulo Niemeyer), um economista (Eduardo Giannetti) e um jurista (José Paulo Cavalcanti). As próximas eleições acontecem nos dias 11, 18 e 25 deste mês (cadeiras nº 20, 12, 39 respectivamente) e no dia 16 (cadeira nº 02).
— Já tivemos de presidente da República (Getúlio Vargas, José Sarney e Fernando Henrique Cardoso) ao (cirurgião plástico) Ivo Pitanguy — lembra o acadêmico Antonio Torres. — Calhou agora de termos personalidades muito conhecidas disputando, mas o critério é a produção. Pop ou não, todos serão bem-vindos.
Ainda assim, é sabido que a academia se esforçou para trazer Fernanda Montenegro. Amiga de Fernanda, a escritora Nélida Piñon teria sido uma das maiores responsáveis por sua decisão.
Embora virtualmente eleita, a atriz evitou falar em público como imortal antes da eleição. No entanto, já havia revelado, em conversas informais com acadêmicos, alguns de seus projetos (vide entrevista acima). Os colegas estão encantados com a disposição da nova imortal, que fez 92 anos em outubro.
Ao menos uma obra publicada
Logo na fundação da casa, os primeiros membros da Academia Brasileira de Letras se dividiram entre aqueles que defendiam o ingresso apenas de escritores e aqueles que prefeririam seguir os critérios da Academia Francesa, aberta também a grandes nomes da ciência, da cultura, da igreja, da política e das Forças Armadas.
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Como lembra o historiador Diogo Arruda Carneiro da Cunha, professor adjunto de teoria política e pensamento político brasileiro na Universidade Federal de Pernambuco e autor de estudos sobre as relações da ABL com a ditadura militar brasileira, preveleceu o ingresso exclusivo de figuras literárias até as primeiras décadas do século XX. Mas, a partir de 1930, a instituição passou a atrair personalidades de renome de outras áreas — o que chegou a angariar algumas críticas.
— Foi instituído, então, que o critério era ter ao menos uma obra publicada — diz Cunha, que é professor adjunto de teoria política e pensamento político brasileiro na Universidade Federal de Pernambuco. — Houve casos, inclusive, em que candidatos foram orientados a lançar algum livro para que pudessem pleitear uma vaga.
Em 2019, no marco de seus 90 anos, Fernanda publicou um livro de memórias, “Prólogo, ato, epílogo” (Cia. das Letras). Ela também organizou, em 2018, a fotobiografia “Fernanda Montenegro: Itinerário fotobiográfico” (Sesc-SP).
Outra mudança significativa ocorrida no século XX foi a relação da ABL com os meros mortais. Antes da presidência de Austregésilo de Athayde, que esteve à frente da casa entre 1959 e 1993, o Petit Trianon era visto como um lugar escurto e fechado, que só podia ser frequentado por seus membros, conta Cunha. Coube a Athayde dar a ABL a cara que tem hoje, de uma instituição com as portas abertas para o público, com cursos e palestras gratuítos.
Embora nunca tenha falado publicamente como imortal antes da eleição, Fernanda Montenegro teria revelado, em conversas informais com acadêmicos, alguns projetos neste sentido. Fala-se que a atriz gostaria de revitalizar o teatro da ABL e promover encontros com jovens atores e dramaturgos.